Economia

Com dívida de R$ 675 milhões, livraria Saraiva pede recuperação judicial

Fundada há 104 anos, rede tem 85 lojas em 17 estados. Segundo a empresa, o pedido de proteção contra credores não altera o funcionamento das unidades
Filial da Livraria Saraiva Foto: Agência O Globo
Filial da Livraria Saraiva Foto: Agência O Globo

RIO - A rede de livrarias Saraiva, fundada há 104 anos e com 85 lojas em 17 estados, entrou nesta sexta-feira com pedido de recuperação judicial. A empresa, que responde por cerca de 30% das vendas de livros no país, acumula dívidas de R$ 675 milhões com 1.100 credores e, desde março, vem atrasando o pagamento às editoras e fechando lojas.

O episódio é mais um capítulo da crise de grandes livrarias e da aposta no modelo de megastore. Em outubro, a Cultura, com fatia de 10% das vendas de livros no país e 17 lojas, entrou em recuperação judicial, com dívidas de R$ 285 milhões. Neste ano, a francesa Fnac encerrou suas operações no país, e a Laselva, famosa por sua presença em aeroportos, fechou as portas após a Justiça decretar sua falência.

Especialistas veem com preocupação o impacto da crise de grandes redes nas editoras, sobretudo nas pequenas e nas que não se prepararam na gestão. Segundo dados do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), a Saraiva deve R$ 282 milhões a editoras, e a Cultura, R$ 80 milhões. Para empresários do setor, a turbulência é resultado de uma combinação de má gestão, modelo de negócios equivocado, crise econômica e concorrência na internet.

— Muitas empresas que fornecem para essas redes não terão capital de giro para manter suas atividades, sendo obrigadas a demitir funcionários e reduzir o número de lançamentos. Ao constatar a necessidade de redução de suas estruturas, Saraiva e Cultura encerraram aproximadamente 40 pontos de vendas em 2018 e demitiram mais de 2.000 funcionários — disse Marcos Pereira, presidente do Snel.

Para Bernardo Gurbanov, dono da editora LetraViva e presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), a origem da crise está no processo de diversificação de portfólio das grandes redes nas últimas duas décadas. Com lojas no modelo megastore — instaladas em shoppings, com aluguéis elevados —, as livrarias passaram a vender eletrônicos e celulares, um tipo de negócio de margem baixa que exige controle rígido de estoque e boa escala de vendas para decolar. A medida contribuiu para concentrar o setor. Em 2013, o país tinha 3.095 livrarias; este ano, deve fechar com 2.500, estimou.

Livrarias mais focadas

O investimento em lojas gigantes tornou as redes ainda mais dependentes de crédito bancário. Quando a recessão começou, em 2014, houve queda nos estoques em um momento em que a Amazon avançava no Brasil. Atualmente, estima-se que a empresa pode chegar no futuro a 20% do mercado.

- As livrarias precisam voltar a fazer curadoria do estoque. Dessa forma, podem se ajustar ao foco de interesse dos leitores. Além disso, precisam ser um centro cultural, organizar eventos para fidelizar o público — afirmou Gurbanov.

Eduardo Seixas, diretor da Alvarez & Marsal, empresa responsável pela recuperação judicial da Cultura, avaliou que a tendência é de crescimento de livrarias especializadas, com oferta específica:

- Manter grandes lojas em pontos de venda como shoppings se tornou um problema, pois o custo é muito elevado, o que gera prejuízo. Além disso, as empresas não conseguem competir com as vendas digitais, como as da Amazon, que oferece descontos.

O pedido de recuperação foi protocolado na 2ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais de São Paulo. A empresa afirmou em comunicado que o processo “não altera o funcionamento do varejo” e que tem tomado medidas para readequar seu negócio a uma nova realidade do mercado, com quedas no preço do livro e aumento da inflação. De janeiro a setembro, a Saraiva acumulou prejuízo de R$ 103 milhões.

Em entrevista concedida antes do pedido de recuperação judicial, Jorge Saraiva Neto, diretor-presidente da Saraiva, disse que mais de 30% das compras de livros são feitas pela internet e que o preço do livro caiu 8% nos últimos cinco anos.

Segundo Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, a crise econômica, a guerra de preços com as lojas on-line e a gestão calcada em lojas grandes e deficitárias ajudam a explicar a crise das redes de livrarias. O cenário contrasta com o aumento da venda de livros no país, que registrou alta de 9,3% em valor de janeiro até 10 de setembro em relação ao mesmo período do ano passado.

— Não é uma crise do livro. É das livrarias. E não é uma ameaça dos e-books , que têm 3% do mercado no Brasil. O livro tem que procurar outros canais, pois ninguém esperava que as duas maiores redes entrassem em recuperação quase ao mesmo tempo — afirmou Palermo.

Paulo Tadeu, dono da Matrix Editora, diz que a empresa foi obrigada a cortar custos, a reduzir a quantidade de lançamentos e a tiragem em razão da crise das duas grandes redes:

— As livrarias demoraram para agir. Foi um problema de gestão. Algumas editoras correm o risco de fechar.

Na noite de quinta-feira, as editoras ouviram as propostas das livrarias. A Saraiva acenou com a possibilidade de pagar antecipadamente neste primeiro momento, o que foi bem recebido. Já a alternativa da Cultura, de pagar antecipado apenas 10% da compra, não foi bem vista. A rede vinha atrasando pagamentos desde 2016.

Fnac fechou todas as lojas físicas no Brasil Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
Fnac fechou todas as lojas físicas no Brasil Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

‘Não é falta de leitor’

Para Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta, a crise das livrarias fez com que o volume de lançamentos ficasse estagnado este ano. A editora lança, em média, 120 livros por ano.

— A crise nas livrarias não é de falta de leitores. Há cada vez mais leitores no Brasil. É uma crise de algumas das principais empresas do setor. Mas o mercado vai se organizar, e o futuro é promissor — disse Elek Machado, que avaliou ser possível expandir em até 20% as receitas com a estratégia de priorizar lançamentos com maior tiragem e giro.

Roberta Machado, diretora comercial do Grupo Editorial Record, ressaltou que existem redes médias e pequenas crescendo de forma sustentável porque têm lojas viáveis e com foco em boas experiências de compra. Segundo Roberta, os oito meses sem receber da Saraiva representam um desfalque de 20% no faturamento anual do mercado editorial:

- Voltamos a investir em nossos canais de venda direta ao consumidor, que é algo no DNA da empresa. Estamos reformulando nosso site para contemplar o e-commerce e o marketplace (área no site que vende produtos de parceiros). Estamos investindo em eventos fora de livrarias e em iniciativas como o clube do livro com curadoria de autores populares.

Segundo Rui Campos, sócio da livraria Travessa, que conta com sete unidades, o comércio passa por um desafio sobretudo por causa do avanço de gigantes da internet no setor, como a Amazon, que, segundo fontes, tem 8% da venda de livros no país:

— As duas grandes redes buscaram o modelo Amazon. Seus gestores relegaram seu legado e seu modelo.

Do outro lado, a Amazon disse que “é focada no cliente e busca oferecer o maior catálogo e conveniência". Diferentemente do modelo das livrarias, a empresa paga às editoras de forma antecipada e dá acesso às empresas ao volume de vendas em tempo real.

Livraria Cultura, no Centro do Rio, pediu recuperação judicial Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Livraria Cultura, no Centro do Rio, pediu recuperação judicial Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Mercado em apuros

No mesmo mês em que a Saraiva anunciou o fechamento de lojas,  a francesa Fnac também anunciou o fim de suas operações no Brasil, e a Cultura pediu recuperação judicial. Em março deste ano, a Laselva, famosa por sua presença em aeroportos, fechou as portas após ter sua falência decretada pela Justiça. Sinais de que o mercado de livros está cambaleante.

Laselva

Em março deste ano, a Laselva, famosa por sua presença em aeroportos, fechou as portas após ter tido sua falência decretada pela Justiça. A rede havia entrado com pedido de recuperação judicial em 2013, quando somava dívidas de R$ 120 milhões. Á época, a empresa culpava fatores como o “caos aéreo", a crise financeira internacional e mudanças no sistema de licitação da Infraero. Criada em 1947, a Laselva chegou a ter 83 lojas no país, inclusive em endereços de luxo como o shopping Iguatemi e a extinta Daslu, em São Paulo. Em março, a livraria tinha apenas quatro unidades, duas no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, uma em Recife e outra em Fortaleza.

Fnac

No mês passado, a rede de livrarias e produtos eletrônicos Fnac fechou sua última loja no país, que funcionava no Flamboyant Shopping Center, em Goiânia. A rede estava há 20 anos no Brasil, onde estabeleceu sua primeira operação fora da França. Seu site de vendas on-line também deixou de funcionar. A unidade brasileira da gigante francesa havia sido comprada, em julho do ano passado, pela Livraria Cultura. Até então, a rede tinha 12 lojas em 7 estados do país.

Cultura

Também no fim de outubro, a tradicional Livraria Cultura pediu recuperação judicial. A rede acumula dívidas de R$ 285 milhões, dos quais R$ 92 milhões apenas com fornecedores. Poucas semanas antes a Cultura havia fechado sua única loja no Centro do Rio e o Teatro Eva Herz, que funcionava no mesmo edifício. Fundada em 1947, a Cultura vinha implementando um programa de ajustes, com o fechamento de lojas de baixo resultado, demissão de funcionários e corte de despesas. A empresa atribuiu os problemas à crise econômica.