Economia

Crise do coronavírus ameaça a indústria dos super-heróis

Quadrinhos sofrem com lojas fechadas e distribuição de novos títulos suspensa
Suspensão na distribuição de novos quadrinhos dificulta ainda mais a vida de lojistas, que se mantém com venda por encomenda e sites de comércio eletrônico Foto: Jonathan Alcorn / Bloomberg
Suspensão na distribuição de novos quadrinhos dificulta ainda mais a vida de lojistas, que se mantém com venda por encomenda e sites de comércio eletrônico Foto: Jonathan Alcorn / Bloomberg

NOVA YORK - Um grande distribuidor interrompeu as entregas e as lojas estão fechadas, colocando em risco todo o setor. Os super-heróis dos quadrinhos estão acostumados a lidar com situações de vida ou morte e a lutar contra cenários aparentemente impossíveis. Mas a quem eles podem recorrer quando os próprios quadrinhos estão em perigo?

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Como muitos outros negócios afetados pela pandemia do novo coronavírus, a indústria de quadrinhos — fonte de conteúdo para incontáveis filmes e séries de TV de sucesso — está em risco considerável. Nas últimas semanas, lojas foram fechadas e o lançamento de novos títulos foi congelado.  Escritores e desenhistas continuam produzindo, sem saber como ou quando as revistas chegarão aos leitores.

O dinheiro envolvido é alto. Nos últimos anos, as vendas de quadrinhos e graphic novels nos EUA e no Canadá superaram US$ 1 bilhão, com as revistas impressas representando mais de um terço do total, segundo dados dos sites Comichron e ICv2, que analisam o setor. As vendas digitais representam cerca de US$ 100 milhões.

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Mas agora, escritores, produtores e veteranos na indústria não enxergam uma solução rápida. Eles não sabem se a crise irá extinguir apenas algumas lojas e editoras ou o modelo o próprio de negócio, que existe há décadas.

— Eu acho que este é um evento em nível de extinção — afirmou Heidi MacDonald, editor do site The Beat, especializado em quadrinhos. — É uma mudança de vida para todos. A indústria inteira sempre viveu com margens muito pequenas. Não há porto seguro nesta tempestade.

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Editoras de todos os portes reconhecem o risco. Dan Buckley, presidente da Marvel Entertainment, dona de franquias como Homem-Aranha, X-Men e Vingadores, afirmou, em comunicado, que “esta crise está gerando impactos sem precedentes em todos os aspectos das nossas vidas e requer paciência e perseverança”, acrescentando, porém, que continua otimista e que os quadrinhos “estão  aqui para ficar”.

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— Antes a ideia era pegar um bônus, agora estou sem pagar meu salário — contou Rod Lamberti, dono da loja Rodman Comics, em Ankeny, Iowa. — O pior cenário aconteceu.

Mike Sterling, dono da Sterling Silver Comics, em Camarillo, na Califórnia, disse ter visto um “enorme aumento nos negócios” pouco antes de uma ordem estadual de fechamento entrar em vigor, no fim de março.

— Não sei se as pessoas queriam montar estoques de quadrinhos para ler em casa ou se havia uma sensação geral de desconforto e as revistas serviam como escape — disse Sterling, contando que as vendas por telefone continuam fortes, apesar do fechamento da loja física.

E as lojas sofreram mais um duro golpe com o anúncio da Diamond Comic Distributors, empresa que distribui gibis e revistas de maior parte das grandes editoras, de suspensão das entregas a partir do dia 1º de abril. A distribuidora também está adiando pagamentos a editores e outros fornecedores.

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As ligações para o escritório da Diamond Comic, em Maryland, não foram atendidas. Mas em comunicado publicado em seu site, Steve Geppi, fundador da empresa, escreveu que os “parceiros editoriais da Diamond também enfrentam inúmeros problemas em suas cadeias de suprimentos, lidando com criadores, gráficas e incertezas crescentes sobre a produção e entrega de produtos”.

Geppi encoraja lojistas a “liberarem a criatividade” para venderem as mercadorias em estoque. Mas, para Sterling, a suspensão da entrega de novos produtos interrompe a cadeia como um todo:

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— Eu não posso ganhar dinheiro, então a Diamond não pode ganhar dinheiro comigo, e as editoras não podem ganhar dinheiro com a Diamond — afirmou.

Embora a maioria dos quadrinhos esteja disponível em formato digital, os fãs valorizam a experiência de visitar as lojas, olhar pelas prateleiras e conversar com outros leitores.

G. Willow Wilson, autora da série “The Dreaming: Walking Hours”, para a DC, e do épico de ficção científica “Invisible Kingdom for Dark Horse”, concorda que as lojas são importantes para a socialização. Diferente de outros conteúdos, que as pessoas se acostumaram a consumir em casa, “os quadrinhos ainda dependem das lojas e das comunidades que elas servem”.

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— Agora estamos privados desses espaços de reunião — disse Wilson. — A perda dessa comunidade é realmente perturbadora para as pessoas.

O trabalho continua

Outros criadores estão menos preocupados, avançando com o trabalho em que estavam envolvidos antes da pandemia, confiantes de que seus títulos serão publicados dentro do cronograma.

— Para mim, pouco mudou — disse Greg Capullo, artista veterano que está desenhando a próxima série da DC, “Dark Nights: Death Metal”. — Estou trabalhando como se todas as nossas datas de lançamento fossem mantidas como o planejado. Se este será o caso ou não, ainda não sabemos.

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Chris Eliopoulos, artista e fundador do estúdio Virtual Calligraphy, que oferece serviços de produção para a Marvel, disse que sua empresa ainda não sofreu com a desaceleração nos projetos.

— Editores e freelancers estão fazendo o trabalho deles e nós estamos recendo as páginas — afirmou Eliopoulos. — Eu estou entre os sortudos e não sentir grandes repercussões até o momento, mas tenho certeza de que isso acontecerá. Tenho certeza de que sentiremos o impacto daqui a poucas semanas.

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A Newsrama, site que cobre a indústria de quadrinhos, informou que a Marvel paralisou o trabalho em cerca de 15% a 20% dos títulos que pretendia publicar em maio e junho. A informação foi confirmada pela Marvel.

Qualquer que seja o resultado desta crise, ninguém espera que a Marvel ou a rival DC, que publica as aventuras do Super-Homem, do Batman e da Mulher Maravilha, desapareçam. Embora suas controladoras — Disney, dona da Marvel, e AT&T, dona da DC — tenham sofrido grandes perdas financeiras com a pandemia, as editoras são fontes importantes de personagens e histórias para grandes sucessos na TV e no cinema.

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— Elas são como departamentos de pesquisa e desenvolvimento relativamente baratos para grandes filmes e programas de TV — analisou Rich Johnston, fundador do site Bleeding Cool. — Eles criam toda a propriedade intelectual e, se você pegar as revistas em quadrinho, todo o design já está pronto.

Aos concorrentes menores restam incertezas sobre os próximos meses.

— O que pode acabar acontecendo é um frenesi alimentar, com empresas maiores entrando e comprando outras — distribuidoras, gráficas e editoras — a preços baixos — opinou Johnston. — Enquanto isso, muitas pessoas perderão seus meios de subsistência.

Por enquanto, os lojistas sobrevivem pelas vendas por correspondência e em sites de comércio eletrônico de itens para colecionadores. Alguns de beneficiaram de campanhas de financiamento coletivo organizadas por celebridades e organizações como a Book Industry Charitable Foundation.

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Dúvidas sobre retorno dos clientes

E enquanto aguardam por uma solução para a suspensão na distribuição, os lojistas temem que aqueles clientes dedicados, que visitavam as lojas todas as quartas-feiras atrás das novidades, percam o hábito e não retornem para as lojas.

— Talvez, em algum momento eu possa reabrir as portas — disse Ryan Liebowitz, da Golden Apple Comics, em Los Angeles. — Mas se eles ficarem em casa sem comprar quadrinhos novos por dois, três meses, eles podem pensar: “É, foi divertido, mas eu realmente não preciso mais deles”. Talvez os clientes reavaliem o que é importante para eles.

Brian Michael Bendis, escritor de vários títulos da DC, incluindo a série Super-Homem, afirmou que embora “as coisas ainda estejam no ar em quase todos os níveis imagináveis”, a indústria vai se reerguer, como em catástrofes passada. Ele lembrou do período após o 11 de setembro de 2001, quando ele escrevia para a Marvel.

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— Me lembro muito especificamente de ter sentido e de terem me dito que era o fim. Então, três semanas depois, tudo se recuperou. Eu acho que algo parecido vai acontecer agora. Nós vamos descobrir como consertar a situação e voltaremos a trabalhar — disse Bendis.

Segundo Bendis, momentos como o que vivemos ilustram bem o motivo pelo qual quadrinhos e personagens devem sobreviver:

— É uma equação muito simples — disse. — (Os heróis) são pessoas que tentam ser o melhor que podem. É disso que se trata. Vamos todos tentar ser desse jeito também.