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Economia Energia

Crise hídrica já ameaça negócios no entorno de reservatórios, de turismo a agricultura

Decisão do governo de privilegiar uso da água para a eletricidade preocupa empresários, que pressionam Congresso para terem mais voz na gestão de recursos hídricos
A redução do nível do lago de Furnas, em Minas Gerais, alterou a paisagem no Furnas Park, complexo hoteleiro de luxo na cidade de Formiga que vem perdendo visitantes
Foto: Daniel Teixeira/ Diox / Agência O Globo
A redução do nível do lago de Furnas, em Minas Gerais, alterou a paisagem no Furnas Park, complexo hoteleiro de luxo na cidade de Formiga que vem perdendo visitantes Foto: Daniel Teixeira/ Diox / Agência O Globo

SÃO PAULO E BRASÍLIA - A crise hídrica que ameaça o abastecimento de energia no Brasil já gera efeitos e prejuízos que extrapolam o setor elétrico no centro-sul do país. A decisão do governo de privilegiar o uso da água para a eletricidade tem despertado preocupação e protestos de outras atividades no entorno dos reservatórios das hidrelétricas, como navegação, turismo, piscicultura e agricultura.

Os impactos mais emblemáticos estão no lago de Furnas, em Minas Gerais, e no de Ilha Solteira, em São Paulo. A mudança na vazão de hidrelétricas na Bacia do Paraná tem impacto até em Itaipu e nas cataratas do Iguaçu.

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Prefeitos da região de Furnas apontam redução de investimentos e empregos em atividades como criação de peixes e plantações, com riscos para a irrigação e hidrovias. O governo diz que pretende compensar financeiramente os setores afetados.

Decisões sobre os níveis dos reservatórios das hidrelétricas têm, em geral, repercussões regionais. Os setores afetados têm feito pressão sobre o Congresso e pedem que a gestão dos recursos hídricos  em conta também seus interesses.

Na tentativa de evitar um apagão, o governo prioriza o acúmulo de água para as usinas, mas diz que não faltará para o consumo humano, apesar de a crise hídrica ser a pior em 91 anos.

Esvaziamento dos reservatórios

Uma das principais medidas para a gestão da crise tem sido a alteração das vazões das hidrelétricas por determinação da Agência Nacional de Águas (ANA). As regras sobre o uso da água determinam que cada reservatório precisa manter uma determinada vazão constante, mesmo que não esteja chovendo.

Quando chove pouco no período úmido, como no último verão, essa exigência gera impactos. O mais evidente é o esvaziamento dos reservatórios ao longo do ano, reduzindo a capacidade das hidrelétricas. Elas respondem por mais de 60% da geração de energia no país. O governo reserva água para as usinas, mas gera impactos em outros setores.

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— Todos os conflitos pelo uso da água têm o mesmo raciocínio. Ou o setor elétrico quer poupar água para o futuro no reservatório, e isso implica não passar água a jusante (rio abaixo) e afetar os usos depois da usina, ou quer liberar água para gerar energia de uma cascata de usinas, o que também pode atrapalhar a comunidade do entorno do reservatório — explica Morganna Capodeferro, pesquisadora da FGV.

Perdas no turismo

A disputa pelo uso das águas do lago da hidrelétrica de Furnas, que envolve 34 cidades de Minas Gerais, é o exemplo mais icônico de batalhas que se multiplicam pelo país. O governo vai mexer na vazão para privilegiar o uso da água para energia e controlar a cascata hidráulica rio abaixo, onde estão outras hidrelétricas.

Furnaspark Resort, na cidade de Formiga, MG. O local é um dos negócios afetados pela seca nos lagos das hidrelétricas do país Foto: Daniel Teixeira/Diox / Agência O Globo
Furnaspark Resort, na cidade de Formiga, MG. O local é um dos negócios afetados pela seca nos lagos das hidrelétricas do país Foto: Daniel Teixeira/Diox / Agência O Globo

A maioria das cidades no entorno já sente impactos negativos da redução do nível das águas em atividades como irrigação e piscicultura. Só no turismo, já combalido pela pandemia, as perdas são de R$ 53 milhões este ano, nas contas da Associação dos Municípios do Lago de Furnas (Alago).

Com a crise hídrica, o empresário Paulo Alves viu as margens do lago ficarem mais distantes do resort Furnas Park, que inaugurou diante do espelho d’água em 2010 em Formiga (MG). E os turistas também se afastaram.

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— Sem água, a gente perde a beleza da região e a possibilidade de oferecer boa parte dos passeios turísticos. Quando a represa baixa, gera risco à navegação — diz Alves.

Para manter a atratividade do empreendimento, ele precisou construir um pequeno dique para garantir alguma água por ali. Mesmo assim, o movimento refluiu. O hotel de alto padrão, que tem 59 quartos e uma pista de pouso para pequenos aviões, tem dado descontos de até 40% na diária para atrair turistas.

Pressão sobre governo de Minas

Políticos e empresários dessa região de Minas querem aumentar o volume de água represada. Fausto Costa, secretário-geral da Alago, argumenta que a redução do nível do reservatório traz prejuízos econômicos, sociais e ambientais que não estão sendo considerados pelo governo federal.

Setores da população local têm feito pressão sobre o governo de Minas e deputados federais e senadores mineiros.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que tem base eleitoral ali, tem defendido que o reservatório opere acima dos 762 metros, ou seja, da metade para cima, como quer a comunidade no entorno.

Hoje, o nível está abaixo de 758 metros e a previsão é que se reduza ainda mais ao longo da época de estiagem, até o fim do ano. Para Thadeu Alencar, diretor da Unelagos, que reúne empresários da região, falta planejamento.

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— A ANA e o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) querem chegar no limite do reservatório, contando que, no futuro, a condição vai melhorar, mas sem saber se isso vai ocorrer. A gestão é imediatista — critica ele, que é presidente de um clube náutico em Formiga, um dos municípios da região mais atingidos pela seca.

Em Alfenas, a cerca de 200 quilômetros de Formiga, o empresário Miguel Barbosa, de 70 anos, conta que seu filho precisou vender uma área em que criava peixes na cidade.

— Essa oscilação grande é pior do que se ficasse o nível baixo sempre porque gera imprevisibilidade e impacto ambiental — queixa-se Barbosa.

Estiagem reduziu a um quinto do normal volume das Cataratas do Iguaçu Foto: Luis Moura/WPP/16-6-2021
Estiagem reduziu a um quinto do normal volume das Cataratas do Iguaçu Foto: Luis Moura/WPP/16-6-2021

Reação em cadeia

Especialistas explicam que reter água no lago de Furnas teria impacto em todas as demais hidrelétricas da bacia do Rio Paraná, que estão abaixo da de Furnas, até Itaipu, no Paraná. Ao todo, dez usinas seriam afetadas.

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Jerson Kelman, ex-presidente da ANA e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) precifica em R$ 8,6 bilhões o valor do volume que deixaria de ser usado para a produção de energia elétrica na região.

As cataratas em Foz do Iguaçu, que já vêm chamando a atenção pela redução do volume, podem ser ainda mais afetadas, impactando o turismo naquela região.

— O volume de água que passa pela usina de Furnas gera energia também em todas as outras na cascata. Se a água não é liberada, perde-se o valor dessa água na cascata inteira. Até Foz do Iguaçu, no final, seria afetada — explica Morganna Capodeferro, da FGV.

O secretário de Turismo de Foz do Iguaçu, Paulo Angeli, afirma que a seca de fato tem reduzido o volume de água na principal atração turística da cidade e que isso pode ser uma preocupação no futuro. Hoje, porém, ele diz que o turismo na cidade segue em retomada pós-pandemia.

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Também têm sua viabilidade ligada ao lago de Furnas a navegabilidade da hidrovia Tietê-Paraná, que escoa principalmente a produção de grãos do agronegócio. A vazão do reservatório de Ilha Solteira, em São Paulo, também pode afetar a hidrovia. Trocar um comboio fluvial por caminhões pode significar um custo de transporte três vezes maior.

Impacto na pesca

O governo pretende reduzir a vazão das usinas de Jupiá e Porto Primavera para controlar melhor as vazões da Bacia do Paraná. A usina de Jupiá, por exemplo, terá sua vazão reduzida para 2.300 metros cúbicos por segundo — abaixo da média histórica.

Outra visão do lago de Furnas esvaziado: 34 cidades mineiras afetadas Foto: Agência O Globo
Outra visão do lago de Furnas esvaziado: 34 cidades mineiras afetadas Foto: Agência O Globo

A medida vai gerar lagoas, aprisionando peixes e gerando prejuízos para pescadores, além de uma eventual paralisação da hidrovia Tietê-Paraná.

Isso porque, quando o nível da água desce, a navegabilidade na região de Nova Avanhandava fica prejudicada pelas pedras no leito do rio. Uma obra para amenizar o problema chegou a ser iniciada em 2017, mas foi paralisada em 2019.

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Em Ilha Solteira, a ANA determinou em 21 de junho a manutenção de uma cota mínima de 325 metros, acatando uma proposta feita pelo governo de São Paulo e pelo Ministério da Infraestrutura. A cota visa a minimizar o impacto sobre o tráfego na hidrovia.

Um dia antes, o nível estava em 325,48 metros, 47,4% do volume útil. Em crises passadas, a comunidade local chegou a pedir na Justiça a paralisação da usina para manter o nível mais alto das águas.

O secretário de Logística e Transportes de São Paulo, João Octaviano Machado Neto, diz que a negociação com a ANA garante a manutenção da hidrovia por enquanto:

— A ANA nos respondeu de forma positiva, mas depende do agravamento da crise.