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Economia

De aula de dinamarquês a pintura e gastronomia: negócios voltados ao bem-estar crescem na pandemia

Consumo de serviços e produtos que permitem uma 'fuga da realidade' avançam durante a crise. Games, pets e cursos ganham espaço
Fernanda Oening, de 24 anos, escolhe um cachorro para adoção numa Loja da Petz em São Paulo Foto: Agência Globo / Edilson Dantas
Fernanda Oening, de 24 anos, escolhe um cachorro para adoção numa Loja da Petz em São Paulo Foto: Agência Globo / Edilson Dantas

SÃO PAULO E RIO - Vale tudo para escapar da dura realidade em tempos de pandemia: maratonar séries, mergulhar nas fantasias dos livros, fugir para o mundo imaginário dos jogos, meditar, consultar os astros, cozinhar, aprender uma língua ou a tocar um instrumento e até se dedicar a bichos de estimação.

A necessidade dos consumidores, que passaram a ficar mais tempo em casa, de esquecer um pouco o mundo lá fora impulsiona negócios ligados ao bem-estar, que chegam em 2021 imunes à crise.

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Esse mercado deve movimentar este ano US$ 1,5 trilhão em todo o mundo, segundo a consultoria McKinsey, crescendo cerca de 10% na comparação com 2020. A tecnologia se destaca, mas muita coisa, digamos, analógica, teve a demanda aquecida. No Brasil, a venda de livros, por exemplo, aumentou quase 20% neste início de ano. O tempo dedicado a jogos triplicou.

Mais pets e plantas

Números positivos atraem investidores. Renato Valente, um dos sócios da Iporanga Venture, conta que avalia start-ups que favorecem o bem-estar para investir com a convicção de que muitos hábitos de consumo adquiridos na pandemia vão continuar:

— Estamos conversando com várias, como plataformas de ioga e outras que se conectam com a reflexão, relacionadas a conhecimento interior. A pandemia acelerou uma tendência que já vinha crescendo. Até o xadrez explodiu, gerando mercado para professores, por causa da série “O gambito da rainha".

A médica Milena Lumi Oening, de 26 anos, que antecipou a formatura para trabalhar no fronte da Covid-19, inscreveu-se para adotar um cachorro. Depois de um expediente estressante, ser recebida em casa por um cãozinho carinhoso não tem preço, ainda que os cuidados com ele resultem em mais gastos para ela.

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A médica Milena Oening, de 26 anos, escolhe um cachorro para adoção numa Loja da Petz em São Paulo: em busca de companhia em casa ainda que represente mais gastos no orçamento Foto: Agência O Globo / Edilson Dantas
A médica Milena Oening, de 26 anos, escolhe um cachorro para adoção numa Loja da Petz em São Paulo: em busca de companhia em casa ainda que represente mais gastos no orçamento Foto: Agência O Globo / Edilson Dantas

— É muito diferente ter um animal em casa, cuidar dele. Eu não teria como ter um se não fosse a pandemia.

Luciano Sessim, diretor de Marketing da Petz, rede de pet shops que em setembro de 2020 estreou na Bolsa valendo mais de R$ 6 bilhões, conta que a empresa vendeu mais ração e acessórios na pandemia. A rede identificou que 22% dos novos clientes são donos de pets de primeira viagem, mas o executivo percebeu que os que já tinham estão comprando mais brinquedos e outros produtos pra eles. Nas lojas da Petz, seções com animais sem dono incentivam a adoção. E a procura aumentou, diz o executivo:

— Com a pandemia, as pessoas viram a necessidade de mais interação. O pet é um membro da família. Os índices de busca de adoção de pets aumentaram muito, e vemos isso em nossos tutoriais nas redes.

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A Petz faturou R$ 1,7 bilhão em 2020, alta de 46,6%. Também viu subirem 79% as vendas de sua área de jardinagem. O consumo de vasos e terra chegou a subir 553%.

— Além de ser um hobby , as plantas deixam a casa mais alegre — diz Sessim.

Fantasia dos games vira ponte para o comércio

Os jogos foram outro meio de esquecer as agruras do dia a dia da pandemia. O tempo dedicado a esse tipo de entretenimento no Brasil triplicou, carregando todo o arsenal de consumo que embutem. É um mercado global estimado em US$ 159 bilhões em 2020, e a expectativa é que alcance US$ 200 bilhões em 2023.

Pazos e Ottoni, criadores do Jovem Nerd: plataforma de cultura geek especializada em RPG virou alvo dos investimentos do Magalu Foto: Sebastian Demarco / Divulgação
Pazos e Ottoni, criadores do Jovem Nerd: plataforma de cultura geek especializada em RPG virou alvo dos investimentos do Magalu Foto: Sebastian Demarco / Divulgação

Não por acaso, o site Jovem Nerd, focado em RPG, no qual o jogador cria seu próprio personagem, foi comprado pelo Magalu , na quarta-feira, como uma plataforma de conteúdo que pode alavancar vendas.

Recentemente, o site obteve o maior financiamento coletivo da América Latina. Angariou R$ 8,5 milhões em dois meses entre 20 mil participantes. Um feito para o negócio que começou como um blog sobre a série do cinema “Star Wars” e atualmente contabiliza mais de 1 bilhão de downloads de seu podcast sobre RPG, um dos mais populares do Brasil.

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— Quando completamos 19 anos, fomos notados pelo Magalu — disse Alexandre Ottoni, um dos criadores da plataforma de cultura geek com Deive Pazos, em vídeo postado após a aquisição, que ultrapassou 700 mil visualizações em dois dias.

Mais tempo dedicado aos games

Carlos Silva, diretor da Gaming GoGamers, que fez uma pesquisa recente sobre o setor, identificou que o tempo na frente do celular, do computador ou dos consoles subiu de cerca de uma para três horas. No RPG, é como se transportar para outro mundo, e as partidas são longas.

Desenvolvedora do jogo Fortnite, Epic Games, recebe investimento bilionário e é avaliada em US$ 28,7 bi Foto: CHRIS DELMAS / AFP
Desenvolvedora do jogo Fortnite, Epic Games, recebe investimento bilionário e é avaliada em US$ 28,7 bi Foto: CHRIS DELMAS / AFP

— As ferramentas on-line facilitaram o jogo, inclusive para encontrar um grupo de pessoas para jogar. É um escapismo do mundo real para um imaginário. Mas não é só isso, tem a interação social, as brincadeiras com amigos — diz Deive Pazos, informando que a dupla manterá o controle criativo da plataforma e será sócia do Magalu.

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De Salvador, aulas de dinamarquês pela internet

Os livros e as séries também têm impulsionado o desejo de aprender idiomas que vão além do inglês. Há espaço até para línguas “exóticas”, como o dinamarquês, que Leila Boavista ensina no Brasil.

Leila Boavista, professora de dinamarquês que mora em Salvador e dá aulas de dinamarquês pela internet: séries aumentaram interesse pela língua Foto: . / Felipe Iruatã
Leila Boavista, professora de dinamarquês que mora em Salvador e dá aulas de dinamarquês pela internet: séries aumentaram interesse pela língua Foto: . / Felipe Iruatã

A busca por suas aulas triplicou na pandemia. Séries da Dinamarca que fazem sucesso em plataformas de streaming ajudam a explicar.

— Antes, a imensa maioria dos meus alunos era de brasileiros que tinham se mudado para a Dinamarca. Hoje, cresce muito o número dos que querem aprender por hobby, para conhecer a cultura do país, pelo desafio, pelo sonho de estudar lá ou até para acompanhar, na língua original, as séries do país — diz.

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A tecnologia que impulsiona várias plataformas on-line de ensino de idiomas e vários tipos de curso em meio às restrições da pandemia permite que Leila possa dar aulas a alunos de todo o país diretamente de Salvador, na Bahia, onde mora atualmente, após 12 anos na Dinamarca.

Ela não tem espaço em sua agenda para novos alunos e aumentou o preço da aula de R$ 150 para R$ 200, embora existam pacotes promocionais para cursos longos.

— A demanda é tanta que estou criando um sistema de aulas on-line por assinatura, já estou gravando o material para disponibilizar aos clientes.

Junto com novos hobbies vêm as compras

No início do isolamento social, entre março e junho de 2020, as famílias adotaram os hobbies como forma de diminuir a tensão. As vendas de máquinas de pão triplicaram na primeira febre de consumo da pandemia.

Logo explodiram os cursos on-line sobre praticamente qualquer coisa. E com elas a demanda por materiais para colocar os novos aprendizados em prática.

Daiane Santos nunca havia pintado até a pandemia. Foi o caminho que encontrou para se desligar um pouco da realidade. Investiu em pincéis, telas e tintas, além de cursos, para passar o tempo e presentear amigos e parentes.

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Ela não tem dúvidas de que movimentou um novo mercado e, como economista, fez as contas: já destinou R$ 7 mil à pintura.

— São compras que não são racionais, mas emotivas e cognitivas. Embora empresas não gostem de dizer que estão “explorando” a pandemia, há negócios crescendo para atender a uma nova demanda da população — diz Daiane, professora do Mestrado em Economia e Gestão Empresarial da Universidade Cândido Mendes.

Daiane lembra que, muitas vezes, não é nem mesmo necessário criar novos negócios, mas redirecionar ações:

— Até então, a maior parte dos cursos de culinária tinha uma pegada mais de empreendedorismo, de aperfeiçoamento de carreira, mas hoje os que mais crescem são os focados nas pessoas que estão cozinhando por hobby, em casa.

Tecnologia atende interesse por bem-estar

A advogada e designer de interiores Bia Capuano começou a cozinhar justamente para se distrair. Investiu em panelas e utensílios premium , como as da marca francesa Le Creuset.

A advogada e designer Bia Capuano encontrou na meditação e na astrologia apoio em meio à pandemia Foto: Arquivo pessoal
A advogada e designer Bia Capuano encontrou na meditação e na astrologia apoio em meio à pandemia Foto: Arquivo pessoal

Porém, a grande novidade em sua vida são serviços de astrologia e bem-estar. Foi o que a levou a procurar a amiga Priscila Charbonniéres, que criou o site Soulloop, uma plataforma que une astrologia, meditação, ioga e autoconhecimento.

— Junto com a pandemia, encerrei um relacionamento, o que sempre mexe com a gente, e com todas aquelas notícias ruins, precisava de apoio. Se não fosse a Priscila, não sei como estaria hoje — conta Bia.

Para uma consulta com Priscila, ao custo de R$ 1.500, há uma longa lista de espera. Só há vagas para maio.

— A busca por meus serviços triplicou na pandemia — diz Priscila.

Ela identifica um novo tipo de angústia dos clientes.

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— Antes, muitos queriam saber o futuro. Agora, devido a toda essa situação, a maior parte das pessoas quer entender o presente — destaca.

Priscila, que vive em Londres, desenvolve um novo aplicativo de assinaturas que entra no ar no meio do ano com serviços de profissionais de Brasil, Reino Unido, EUA e Índia.

— Não posso revelar números, pois estou fazendo pessoalmente todo o investimento, mas plataformas semelhantes à minha demandam investimentos de US$ 2,5 milhões a US$ 5 milhões nos EUA.