Economia Defesa do Consumidor

O notebook quebrou? Consumidores vivem saga para consertar eletrônicos, um desafio no home office

Preço e demora desestimulam o reparo, e especialistas alertam sobre redução da vida útil dos aparelhos. Queixas sobre assistência técnica dobram no Procon-SP
A publicitária Deborah Moraes desembolsou quase R$ 2 mil para consertar um notebook e ainda teve que comprar outro para trabalhar enquanto o equipamento estava na assistência técnica Foto: Acervo pessoal
A publicitária Deborah Moraes desembolsou quase R$ 2 mil para consertar um notebook e ainda teve que comprar outro para trabalhar enquanto o equipamento estava na assistência técnica Foto: Acervo pessoal

RIO - O notebook da publicitária Deborah Moraes, de 25 anos, começou a apresentar erros e problemas de bateria após uma parada para manutenção preventiva. Para consertá-lo, ela desembolsou R$ 980. Duas semanas depois, o computador apresentou novo problema.

Trabalhando de casa e sem poder parar, ela acabou comprando outro, mas não deixou de fazer o reparo.

— Comprei esse computador em 2017 por R$ 5 mil, ele está novo ainda. Agora desembolsei quase R$ 2 mil para consertá-lo, nas duas passagens pela assistência técnica. Acabei comprando outro notebook, não podia ficar 20 dias sem trabalhar. Mas o meu antigo tem configuração melhor. Fazer a manutenção é quase inviável — queixa-se.

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O custo e o tempo de reparo, diz Renata Reis, coordenadora de Atendimento do Procon-SP, são dois fatores de desestímulo ao conserto de aparelhos.

O resultado, afirma, é que o ciclo de vida útil dos produtos é cada dia menor.

— E isso é algo que nos preocupa bastante, a obsolescência programada. As empresas são responsáveis por fornecer peças para reparo, segundo o Código de Defesa do Consumidor (CDC), por um tempo razoável, o que entendemos é a vida útil do produto. O consumidor precisa cobrar isso dos fabricantes e, sempre que tiver dificuldade ou receber orçamentos absurdos, denunciar ao Procon — diz Renata.

Fernanda Iwasaka, analista de conteúdo e metodologia do Instituto Akatu, chama atenção para o fato de que estudos europeus já apontam redução de 2,3 anos no ciclo de vida projetado ou esperado para produtos eletrônicos, como TVs e smartphones.

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Aumento de queixas

Fernanda avalia que as mudanças de comportamento durante a pandemia, com o deslocamento de trabalho e estudo para casa, tornou ainda mais evidente a dificuldade de reparo para muitos consumidores:

— Houve um aumento do uso de equipamentos, não só para o trabalho e a escola como para o entretenimento. A consequência é o aumento da busca por conserto. Além de as peças originais serem difíceis de acessar, no Brasil a maioria ainda é importada, o que torna o reparo mais caro ainda.

O número de reclamações referentes à assistência técnica registradas no Procon-SP, de janeiro a abril deste ano, aumentou 111% em relação ao mesmo período do ano passado.

Problemas com celulares e notebooks se multiplicaram nesse período, mas a autarquia não tem estudo que comprove a relação desses números com o aumento do trabalho e das aulas em casa.

Pedro Queiroz, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão do Ministério da Justiça, diz que está acompanhando de perto a evolução das reclamações voltadas ao direito de reparar produtos e sobre equipamentos eletrônicos que se tornam obsoletos antes da hora.

— O direito de reparar está na agenda internacional da defesa do consumidor. Há inciativas legislativas para promoção de práticas consumeristas e ambientais mais conscientes em duas dezenas de estados americanos. E esse é um tema que vamos estudar para regulamentar.

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Além do direito ao conserto, Fernanda chama atenção para o fato de que os fabricantes induzem à troca de equipamentos, seja pelo marketing ou impondo dificuldade de atualização de programas, o que torna os produtos obsoletos antes da hora.

Atualização de apps

A estudante universitária Ana Beatriz Oliveira queixa-se de que alguns aplicativos não funcionam mais em seu celular, comprado em 2016.

— Tentei baixar programas para estudo e não consegui, por exemplo. A cada dia o cardápio de serviço é mais reduzido. O tempo vai deixando o aparelho disfuncional.

Renata, do Procon-SP, diz que é importante o consumidor relatar aos órgãos de defesa do consumidor essas questões. Para ela, trata-se de prática abusiva:

— Quando compra o telefone, o consumidor não tem escolha do sistema operacional, então, quando ele deixa de atualizar, é abusivo, pois impede o uso pleno do aparelho.

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Ela pondera que esse tipo de prática põe em dúvida a alegação recente de fabricantes de que a ausência do carregador na compra de novos celulares teria um objetivo de preservação ambiental:

— Somos os primeiros a nos preocupar com impacto ambiental, mas a empresa precisa dar garantias ao consumidor e provar a real intenção ao deixar de fornecer carregador.

Movimento nos EUA

As restrições de acesso a peças originais para o reparo de produtos, principalmente eletroeletrônicos de grandes marcas, fez com que proprietários de pequenas oficinas de conserto e ativistas se unissem, nos Estados Unidos, em torno de projetos de lei, em trâmite em 27 estados americanos, que defendem o direito de conserto.

O objetivo é pôr fim às regras que restringem a possibilidade de reparos a fornecedores autorizados.

Na avaliação desse grupo, o sistema atual é um dos responsáveis pelo curto ciclo de vida de dispositivos pessoais como smartphones, tablets e notebooks, o que leva ao aumento do impacto ambiental desses aparelhos.

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Em mais de metade dos estados, no entanto, tais projetos já foram rejeitados, diante do lobby das empresas no Legislativo.

— Permitir que terceiros não controlados tenham acesso a informações, softwares, ferramentas e peças de diagnóstico confidenciais colocaria em risco a segurança dos dispositivos dos consumidores e os colocaria em risco de fraude — disse David Edmonson, vice-presidente da TechNet, grupo que representa várias grandes empresas de tecnologia, incluindo Google e Apple.

A instituição enviou cartas a legisladores em vários estados como parte de uma coalizão do setor.

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Os defensores dos projetos de lei estão avançando em Nova York e outros estados usando depoimentos de empresários locais. No início de maio, a Comissão Federal de Comércio (FTC, pela sigla em inglês) entregou um relatório ao Congresso no qual argumenta que o sistema atual para produtos eletrônicos de consumo prejudica a concorrência e o desenvolvimento econômico em áreas de baixa renda.

“A pandemia exacerbou os efeitos das restrições de conserto sobre os consumidores”, afirmou a FTC, observando a escassez específica de laptops escolares. Ainda segundo a comissão, “há poucas evidências para apoiar a justificativa dos fabricantes para as restrições ao reparo”.

Colaboraram Carolina Nalin e Alex Braga, estagiário, sob a supervisão de Luciana Casemiro