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Economia

Desemprego recorde e inflação em alta fazem do Brasil o 2º país com maior sensação de mal-estar

Apenas Turquia está à frente em ranking que mede desconforto socioeconômico. É o pior resultado desde 2016
A diarista Tayene Silva, de 33 anos, é mãe de quatro filhos e sofre com o desemprego e o custo de vida maior na pandemia Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
A diarista Tayene Silva, de 33 anos, é mãe de quatro filhos e sofre com o desemprego e o custo de vida maior na pandemia Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

RIO - A combinação de desemprego recorde e inflação alta levou o Brasil a ocupar a segunda posição no ranking do índice de mal-estar entre 38 países.

É o que revela levantamento do pesquisador Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), antecipado ao GLOBO.

A lista relaciona membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne economias avançadas, e o Brasil.

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Dados do IBGE e da OCDE reunidos pelo pesquisador mostram que a taxa de desconforto socioeconômico no Brasil chegou a 19,83% no primeiro trimestre de 2021 e só perde para a da Turquia, cujo último registro se refere ao quarto trimestre de 2020, quando chegou a 26,28%.

Em seguida, aparecem Espanha (16,09%), Colômbia (15,63%), Grécia (14,08%) e Chile (13,42%). Quanto mais alto esse percentual, pior é a taxa.

O índice de mal-estar ou taxa de desconforto — em inglês, chamada de misery index — une a situação do mercado de trabalho ao comportamento dos preços. É utilizado por economistas por duas razões.

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O índice permite avaliar como o cidadão médio sente os efeitos da economia ao longo do tempo, já que concentra dois aspectos objetivos e muito sensíveis ao cotidiano da população.

Outra utilidade é avaliar a relação entre desemprego e inflação em determinada economia, já que a literatura compreende que uma boa gestão macroeconômica deve ser capaz de minimizar as duas taxas, com a possibilidade de se criar entre elas uma relação de trade-off (em que a alta de uma reduz a outra).

Piora na pandemia

No Brasil, especificamente, os cidadãos estão com a pior percepção sobre a situação econômica desde a recessão de 2016, quando o indicador chegou a 20,6% no terceiro trimestre daquele ano.

Entre 2017 e meados de 2020, a taxa de desconforto chegou a cair para 15,32%, mas voltou a acelerar no ano passado e atingiu 19,83% no primeiro trimestre deste ano.

O cálculo é feito a partir das taxas de desemprego e de inflação em doze meses. Neste caso, foi considerada uma média trimestral da inflação e do desemprego.

No Brasil, segundo o IBGE, a taxa de desemprego chegou a 14,49% em março enquanto a inflação pelo IPCA foi de 6,1% em doze meses. A meta do Banco Central para 2021 é 3,75%.

Duque lembra que houve uma piora tanto no mercado de trabalho quanto na inflação em meio à pandemia. Segundo o IBGE, 29,7% da força de trabalho do país são de subutilizados: desempregados, desalentados ou pessoas que trabalham menos horas do que gostariam.

O real desvalorizado frente ao dólar em meio à alta dos preços de commodities , apesar de sustentar o crescimento de setores importantes da economia, pressiona a inflação — com destaque para os alimentos — e corrói a renda das famílias.

— A economia está em situação aparente de melhora, mas a população está em mal-estar. A recuperação tem sido puxada por agropecuária e indústria, que naturalmente já empregam menos do que o setor de serviços. Esses setores aumentaram a sua produtividade nesse período, o que gera maior produção sem aumento de emprego — explica Duque.

Mãe de quatro filhos, a diarista Tayene da Silva, de 33 anos, conta que a primeira rodada do auxílio emergencial foi o que ajudou a sustentar a família no ano passado, quando a procura por serviços domésticos despencou.

Este ano, ela diz que está mais difícil, já que só recebeu o Bolsa Família, de menor valor:

— Cato latinha, vendo ferro, papelão às vezes. Quando aparece faxina, o que é raro, faço. Mas está difícil. Carne não entra aqui em casa há tempos. A conta de luz está muito cara, e o gás de botijão também. Não vejo esse crescimento (da economia) que falam, é só ilusão. Acho que a situação está ruim e tende a piorar porque falta oportunidade.

Duque concorda que a percepção sobre a economia ainda tende a “piorar antes de melhorar”. Isso porque o Brasil é um dos países com a pior aceleração da taxa de desconforto.

A inflação em doze meses já chega a 8,06%, considerado o resultado de maio, e a taxa de desemprego — 14,7% no trimestre encerrado em março — ainda tende a subir na comparação mensal e interanual.

“A economia está em situação aparente de melhora, mas a população está em mal-estar. A recuperação tem sido puxada por agropecuária e indústria, que empregam menos”

Daniel Duque
Pesquisador do Ibre-FGV

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— Começamos a ver um aumento dos preços administrados, como energia e gasolina, puxados pela seca e pelo dólar. E ainda vamos ver um grande número de pessoas voltando a procurar trabalho, (o que pressiona a taxa), antes que o número de empregos gerados possa ser maior do que isso. Sem dúvida a gente supera a situação em que estivemos em 2016 — afirma Duque.

Renda em queda

Julia Braga, economista e professora da UFF, diz que o crescimento de 1,2% do PIB no primeiro trimestre de 2020 pôs o país no mesmo nível de 2014, mas ainda guarda um “passivo social não resolvido”:

— A gente está à mercê do ciclo internacional para o crescimento. E o mercado de trabalho já estava muito frágil antes da pandemia, vindo de uma década de estagnação.

“O desemprego bate mais forte para essas pessoas (de renda mais baixa) e ainda vimos uma aceleração da inflação. Isso gera uma sensação de mal-estar que só não ultrapassou o nível histórico de 2016 porque tivemos o auxílio emergencial”

Maria Andreia Parente
Eonomista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

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Para a economista Maria Andreia Parente, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a pandemia impactou diretamente o emprego, sobretudo o de trabalhadores informais e menos escolarizados, geralmente concentrados no setor de serviços.

Além do mercado de trabalho difícil, diz, a inflação nos últimos doze meses pressionada pelos altos preços de alimentos, energia e combustíveis — itens básicos e que pesam mais para famílias de renda mais baixa — faz com que essa parcela da população encare um custo de vida maior.

— O desemprego bate mais forte para essas pessoas e ainda vimos uma aceleração da inflação. É a compra do mercado mais cara, o gás de cozinha, a conta de luz. Isso gera uma sensação de mal-estar que só não ultrapassou o nível histórico de 2016 porque tivemos o auxílio emergencial — afirma Maria Andreia.

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Para Lucas Assis, analista da Tendências Consultoria, o desempenho positivo da economia no início do ano não se traduz em melhores projeções para o mercado de trabalho.

A consultoria projeta que o PIB avance 4,4% este ano após a queda de 4,1% em 2020, mas a previsão de taxa média de desemprego neste ano é de 14%, acima dos 13,5% registrado em 2020.

— Por mais que haja reação do mercado de trabalho, não será suficiente para garantir renda familiar nos níveis de 2020 entre os pobres, que contaram com proteção social como a do auxílio emergencial. A perspectiva para classes D e E é de queda na renda — diz Assis.

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A promotora de vendas Carla Evangelista, de 33 anos, está entre os mais de 14,8 milhões de brasileiros que buscam nova oportunidade de trabalho.

Mãe solo, foi demitida em fevereiro e perdeu 70% da renda. O benefício do Bolsa Família e a pensão do pai de seu filho ajudam com certas despesas, mas não a eximiram de pedir ajuda a parentes e pessoas próximas para se manter.

— Não acho que as coisas vão mudar muito rápido, o governo não está preocupado com o sofrimento que estamos passando. Eu só quero viver com dignidade — desabafa.

*Estagiário, sob supervisão de Danielle Nogueira