Economia

'E-commerce' faz parceria com moradores e abre caminho para a entrega de compras em favelas

Falta de segurança e tempo para levar o produto até o cliente são obstáculos. Estudo mostra que entregas em comunidades pode custar até 50% mais
Na Rocinha, no Rio, delivery de comida beneficia trabalhadores como Rômulo Leite e empresas como a de Alexandre Araújo (à direita)
Foto: Ana Branco
Na Rocinha, no Rio, delivery de comida beneficia trabalhadores como Rômulo Leite e empresas como a de Alexandre Araújo (à direita) Foto: Ana Branco

RIO - O crescimento do comércio eletrônico no Brasil, acelerado pela pandemia, está levando as empresas do setor a desenhar estratégias para alcançar um público que tem cada vez mais acesso à internet, mas cuja porta ainda é difícil de ser alcançada pelos entregadores: os consumidores que vivem em favelas.

Com logradouros desorganizados e áreas de risco, muitas comunidades tiveram seu potencial consumidor desprezado por esse setor há até pouco tempo. Mas isso começa a mudar, ainda que custe mais para as empresas.

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Um estudo do Insper mostra que a entrega de produtos em casas localizadas em favelas pode custar de 20% a 50% mais que em outras regiões das cidades.

Entre os fatores que pesam nesta conta estão a falta de segurança, o tempo que o entregador leva para encontrar endereços incompletos e o fato de muitas ruas não passarem de vielas estreitas que não comportam veículos grandes de carga.

— A principal dificuldade é como chegar numa determinada casa. As empresas acabam desistindo. Às vezes, dizem que é por ser área de risco, mas, na verdade, é por questão de custo mesmo — explica Lars Sanches, pesquisador e professor do Insper.

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Ele reforça que o único caminho para superar esses obstáculos são as parcerias locais:

— O morador conhece as ruas, os vizinhos. Isso é fundamental.

A Clique Retire, que opera armários inteligentes no país que servem como pontos alternativos de entrega de produtos, instalou recentemente um conjunto dos seus lockers na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio.

Ao fazer uma compra na internet, um morador da comunidade pode apontar a central como endereço de entrega e buscar o produto lá.

Última milha

Ainda é um teste, mas Gustavo Artuzo, diretor-executivo da empresa, vê grande oportunidade para a logística de entregas com armários no que chama de áreas restritas, onde muitas vezes nem os Correios chegam:

— Conversamos com lideranças comunitárias, empresários locais e instalamos os armários na sede da ONG Atitude Social. Não queríamos ser vistos como empresa do asfalto. Outras dez comunidades já nos pediram para ter o serviço. Mas estamos estruturando e testando a operação para, depois, replicar.

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A B2W Digital, que opera as plataformas Americanas.com, Submarino, Shoptime e Sou Barato, resolveu ampliar a clientela associando-se à start-up de logística Favela Brasil Xpress e ao G10 Favelas, que reúne líderes comunitários das dez maiores comunidades do país.

A parceria começou a fazer entregas em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, e pretende replicar o sistema em escala nacional.

— Ainda é cedo para saber o impacto, mas naturalmente haverá aumento das nossas vendas ao incluir este morador no e-commerce . São mais de 11 milhões de moradores nas favelas, é uma demanda reprimida — diz o gerente de Operações da B2W, André Biselli.

Negócio local. Morador de Paraisópolis, Giva Pereira criou uma start-up
Foto: Edilson Dantas
Negócio local. Morador de Paraisópolis, Giva Pereira criou uma start-up Foto: Edilson Dantas

Giva Pereira, de 21 anos, presidente da Favela Brasil Xpress, explica que a varejista entrega os produtos num centro de distribuição da comunidade.

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Ali, um grupo de funcionários, todos moradores, faz a triagem e leva os pacotes às casas dos clientes — a chamada última milha no jargão do setor.

Tudo é feito a pé ou de bicicleta, mas a ideia é disponibilizar em breve bicicletas elétricas e tuc-tucs.

— A ideia da start-up surgiu no final do ano passado, quando identifiquei que havia doações para a comunidade que não tinham como chegar na casa das pessoas. O mesmo acontecia com as entregas de compras feitas pelos moradores — conta Pereira, que também mora em Paraisópolis.

Outra gigante de encomendas, a Natura aproveita o fato de ter muitas consultoras — a base do seu modelo de negócio — vivendo em favelas para ganhar clientes entre os vizinhos delas.

A empresa prioriza a contratação de entregadores locais ou parcerias com transportadoras que contratarem moradores das comunidades.

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O Mercado Livre também diz contratar entregadores nas comunidades e que tem investido em sua malha logística para chegar mais rápido a todas as localidades, inclusive as consideradas de risco, mas não especifica quais ações ou regiões.

Renda perto de casa

Não são apenas as grandes varejistas atentas a este mercado. A empresa de delivery Box firmou uma parceria com um restaurante na Rocinha, na Zona Sul do Rio, para montar uma equipe de entregadores de comida na comunidade, onde os aplicativos fazem tanto sucesso quanto no asfalto.

— O dono do restaurante perguntou se faríamos entregas lá, e gostamos da ideia. Estamos falando com mais três na Rocinha e queremos ir para outras comunidades. O diferente é ter gente que conhece as ruas, sabe como funciona. É um polo muito forte — avalia o gerente regional da Box no Rio, Alexandre Araújo.

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Contratar entregadores nas favelas melhora o acesso de quem vende e ajuda a gerar renda localmente num momento de alto desemprego.

— Trabalhando perto de casa, ganhamos tempo e economizamos no transporte e na alimentação. Dá para almoçar em casa — diz Rômulo da Silva Leite, ex-morador da Rocinha que foi escolhido para coordenar a equipe de entregadores da Box na favela.

Em Salvador, o TrazFavela nasceu de uma tragédia, quando o primo de um dos sócios foi morto ao fazer uma entrega numa favela da capital baiana.

Em 2019, ele e outras pessoas decidiram criar uma rede para conectar comerciantes e moradores a partir de um site e do WhatsApp.

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As vendas triplicaram em três anos, e o negócio em breve vai lançar o aplicativo. Sem melhorias na segurança das comunidades, a start-up cresce contornando o problema.

— Ninguém melhor do que o morador para conhecer a sua área. Tem regiões que são tranquilas, mas, em outras, o motoboy não pode entregar. Ele sendo dali, já conhece onde pode e não pode entrar, sabe o processo — diz a sócia do TrazFavela, Ana Luiza Sena de Jesus.