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Economia Energia

Entenda por que a redução dos 'rios voadores' da Amazônia aumenta desafio de evitar apagão

Climatologistas apontam sinais de agravamento da seca na Bacia do Paraná, que concentra os principais reservatórios de hidrelétricas, desde 2014
Itaipu está entre as hidrelétricas que têm barragem no rio Paraná. Climatologistas alertam que La Niña e desmatamento na Amazônia são desafios para enfrentar a crise hídrica Foto: Caio Coronel / Divulgação/28-5-2021
Itaipu está entre as hidrelétricas que têm barragem no rio Paraná. Climatologistas alertam que La Niña e desmatamento na Amazônia são desafios para enfrentar a crise hídrica Foto: Caio Coronel / Divulgação/28-5-2021

RIO - A chuva prevista para amanhã em Curitiba parece trazer uma esperança de alívio na seca recorde na Bacia do Paraná. Mas não passará disso, esperança que escorrerá com rapidez pelo ralo. A recuperação dos principais reservatórios de hidrelétricas no centro-sul do país — que podem chegar secos em novembro, segundo alerta do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) — não se resolverá em pouco tempo, alertam cientistas.

Tampouco a crise hídrica, resultado do somatório de fenômenos climáticos acumulados nos últimos anos na região e com raízes tão profundas que chegam à Amazônia.

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A estiagem que ameaça a geração de energia é a mais recente prova da dependência da economia brasileira do ambiente, destaca o climatologista Carlos Nobre, conhecido mundialmente por seus estudos das mudanças climáticas.

Além da segurança energética, dependem da chuva o agronegócio exportador e o abastecimento de água nas cidades.

— O clima é um sistema complexo e conectado. Existem relações diretas e indiretas, e a forma como lidamos com o meio ambiente está ligada a isso. Não existe boa gestão de energia sem boa gestão do clima — salienta Nobre.

O que a Bacia do Paraná sofre agora é o ápice de uma crise agravada pelo fenômeno La Niña, uma das grandes anomalias do clima.

Começou em 2019 e só veio intensificar a redução das precipitações na parte da alta da bacia identificada desde 2014 devido à redução dos chamados rios voadores, os canais da umidade da Amazônia que ajudam a alimentar as chuvas em boa parte do centro-sul do país.

Os rios voadores se formam quando os ventos vindos do Atlântico atravessam a Amazônia e recebem a umidade da floresta. Eles viajam junto aos Andes e descem em direção ao sul do continente, chegando ao sul do Brasil.

Avanço do desmatamento

Em anos de seca na Amazônia, diminui a chuva no sul do Brasil no inverno, quando as hidrelétricas, a agricultura e o abastecimento de água mais precisam dela, porque é a estação naturalmente menos chuvosa.

Um estudo de Nobre com outros pesquisadores, de 2012, revelou fortes sinais de que é a umidade amazônica que permite a existência da Mata Atlântica no Oeste do Paraná, das matas do Parque Nacional do Iguaçu e de toda a água dali.

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Estima-se que 18% das chuvas das bacias do Prata e do Paraná venham dos rios voadores. Mas, segundo o climatologista, ainda é desconhecido o impacto que os índices recordes de desmatamento na Amazônia nos últimos anos têm tido nas chuvas do centro-sul.

. Foto: Editoria de Arte
. Foto: Editoria de Arte

Na última sexta-feira, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais(Inpe) mostrava que, em maio, pelo terceiro mês consecutivo, os índices de desmatamento bateram os recordes históricos mensais.

Mas ainda estão em curso estudos para avaliar se as secas no sul da Amazônia, região intensamente afetada pelo desmatamento, reduziram os rios voadores.

“Temos fenômenos naturais, como La Niña, a redução das chuvas e, somado a tudo isso, a pressão humana por mais água”

José Marengo,
Coordenador do Cemaden

José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), diz que a Bacia do Paraná não consegue se recuperar das condições de seca desde 2014:

— Choveu por alguns meses, mas em volume insuficiente para repor a umidade do solo e o nível dos rios. E isso começou em 2014 com um bloqueio atmosférico que impediu a chegada dos rios voadores da Amazônia. Chuvas insuficientes na sequência, e tudo piorou com La Niña.

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Sempre que aparece, La Niña, a menina má do tempo, costuma secar o centro-sul do Brasil e fazer chover copiosamente em partes da Amazônia, que estão mergulhadas atualmente numa cheia histórica. O nível do Rio Negro chegou a 29,99 metros em Manaus ontem, o mais alto desde o início dos registros, em 1902.

A do Paraná é uma das 12 bacias hidrográficas brasileiras, e a com maior capacidade instalada de geração de energia do Brasil. Ficam lá, por exemplo, as usinas de Itaipu, Furnas e Porto Primavera.

A bacia compreende 879,8 mil quilômetros quadrados, uma região altamente industrializada e urbanizada que inclui Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal.

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Todos os rios da bacia estão com níveis baixos, como o Paraná, o Iguaçu e o Grande. O boletim mais recente do Cemaden, emitido na semana passada, indicou que o cenário é o pior possível, sem previsão de chuva capaz de recompor os reservatórios.

‘Extremos mais extremos’

Há dois anos, a seca em toda a bacia oscila entre as classificações de severa e excepcional. Essa é a mesma classificação da parte alta da bacia desde 2014, informa a nota do Cemaden. A situação crítica chegou à parte baixa da bacia em fevereiro de 2019. E desde então o cenário não melhora.

Segundo o Cemaden, são mínimas as chances de recuperação dos reservatórios nos próximos quatro meses.

— Essa seca é um fenômeno complexo. Temos fenômenos naturais, como La Niña, fenômenos ainda não bem compreendidos como a redução das chuvas e, somado a tudo isso, a pressão humana por mais água — diz Marengo, criador da expressão “rios voadores”.

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O climatologista acrescenta que, como previram modelos sobre efeitos do aquecimento global, nas últimas décadas as chuvas se tornaram irregulares. Chove muito em poucos dias, em períodos alternados com secas.

É a receita para o desastre, literal e figurado. Chuvas concentradas causam enchentes e desmoronamentos. Não repõem o nível dos rios e prejudicam a agricultura.

Nobre vê a redução das chuvas com grande preocupação. Desde o fim do século passado, as chuvas têm se reduzido em quase todo o Brasil: na maior parte da Amazônia, no Nordeste, no Centro-Oeste e em parte do Sudeste. Até 2010 o Sul não havia sido afetado.

— Nos últimos dez anos, a chuva no Sul também começou diminuir, e os baixos volumes dos reservatórios atestam isso. Os extremos têm se tornado mais extremos. Se a tendência continuar, nosso modelo energético baseado em hidrelétricas sofrerá, todo o país sofrerá. Por isso, é tão importante considerar o meio ambiente na economia — enfatiza Carlos Nobre.