Há quatro anos contavam-se nos dedos o número de fintechs (como são chamadas as startups do setor financeiro) que ofereciam conta digital, crédito e cartões a públicos específicos, o chamado cliente de nicho. Com o avanço da tecnologia e da regulação, essa tendência se consolidou e vem crescendo entre grupos bem distintos, dos identitários como população negra e LGBTQIA+ a segmentos tão diversos da sociedade como apoiadores de ONGs e até mesmo gamers. É cada vez mais fácil achar um banco digital para chamar de seu.
Essas instituições financeiras são criadas abraçando causas que se identificam com seus clientes. Transformaram-se também numa espécie de comunidade onde são discutidos problemas e demandas de cada um desses públicos.
Só na Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), entidade que reúne essas startups, já são 15 bancos digitais de nicho filiados. São voltados para setores como advocacia, turismo e entretenimento, crianças e adolescentes, terceiro setor e casais.
Mas existem outras instituições desse tipo no mercado, algumas criadas por empresas, como o banco BBC, da Simpar, holding do setor de logística, que atende motoristas de caminhão.
Essas fintechs ajudam a aumentar a competição no setor bancário, ainda muito concentrado no país. Cerca de 80% dos brasileiros bancarizados mantêm contas em instituições tradicionais e digitais ao mesmo tempo, revelou recentemente uma pesquisa da Akamai Technologies em parceria com a Cantarino Brasileiro, antecipada pelo Valor.
— São clientes que não são bem atendidos nas instituições financeiras tradicionais e, nos bancos de nicho, conseguem ter uma experiência melhor até mesmo com serviços que já existem, mas são empacotados e oferecidos de uma forma diferente — diz Diego Perrez, diretor-executivo da ABFintechs.
Em comum, os bancos de nicho têm a operação 100% digital, sem agências físicas e oferecem, por exemplo, melhores condições de crédito, com juros mais baixos que a média do mercado. Sergio All fundou a Conta Black, voltada para pessoas negras, a partir de sua própria experiência quando buscava crédito.
Portas fechadas para o crédito
Ele teve negado um empréstimo em um grande banco para expandir seus negócios de publicidade, mesmo com a folha de pagamento naquela instituição e o nome limpo. Sentiu na pele o que pesquisas já mostraram: pretos e pardos têm menos chance de obter crédito nos bancos que brancos. Ele então decidiu empreender exatamente nessa área e se juntou à executiva Fernanda Ribeiro para criar a Conta Black.
Começou como uma instituição de pagamentos. Hoje, a fintech que eles dirigem tem cerca de 40 mil clientes em todo o Brasil. Oferece conta digital, cartão de crédito pré-pago, investimentos, Pix, seguro e está ampliando a oferta de crédito. Recebeu R$ 1,5 milhão de um investidor anjo em 2019.
— Havia demanda reprimida. Quase 90% de nossos clientes são pessoas pretas, entre pessoas físicas e empreendedores — diz Fernanda.
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Além disso, em paralelo, eles criaram a AfroBusiness, uma rede de apoio a empreendedores negros que os ajuda na conexão com grandes empresas e no acesso a capital por meio do banco. São nove mil associados.
Estimativas do Instituto Locomotiva apontam que pretos e pardos, que são mais de 50% da população, movimentem R$ 1,7 trilhão por ano na economia brasileira.
‘Orgulho’ financeiro
Leandro Dias Brasil e seu sócio John Wesley Days fundaram, há três anos, a Akintec outro banco digital que busca reduzir a carência de empréstimos para empreendedores negros. Oferece conta global com cartões internacionais, Pix e acesso ao universo de investimentos em criptoativos. Também ajuda na aceleração de startups.
A empresa criou um fundo de investimentos com foco em ESG (sigla para ações ambientais, sociais e de governança nas empresas). São cerca de 50 mil contas e R$ 50 milhões em empréstimos liberados até agora.
— Estamos finalizando uma rodada de captação de US$ 2 milhões, e os recursos serão direcionados a minorias que fundaram empresas e não têm acesso a crédito — diz Dias, acrescentando que, nos últimos dois anos, receberam aportes de Google e Nubank.
O Pride Bank foi um dos pioneiros no segmento de nicho ao oferecer serviços à população LGBTQIA+ no Brasil, já a partir de 2019. Está sempre pensando produtos voltados a esse público, como cartão de crédito que aceita nome social e artístico do cliente.
Este ainda é um dos constrangimentos enfrentados por esse público nos bancos tradicionais. Tem conta digital, cartão de crédito (pré-pago) e maquininhas, mas já planeja o futuro com novos produtos específicos de seguros, comércio eletrônico e na área de saúde.
O banco também apoia causas sociais de seu público, como reinserção social e profissional de pessoas dessa comunidade, além da defesa e garantia dos direitos da pessoa LGBT idosa. A fintech foca no poder de consumo de gays, lésbicas, bissexuais, trans e outros grupos que formam a sigla, cujo interesse das empresas fica ainda mais evidente neste mês do Orgulho.
— Estamos falando em mais de 20 milhões de pessoas e um gasto anual de mais de R$ 450 bilhões. Para crescer, estamos buscando investidores interessados em se juntarem a nós — diz Márcio Orlandi, presidente e fundador do banco.
Capital de impacto
O LadyBank, que nasceu em 2020, oferece serviços de planejamento e investimento automatizado com foco nas mulheres. Utiliza um robô com modelos testados por mais de vinte anos. A plataforma oferece gestão de orçamentos, criação automatizada de planejamento financeiro futuro e também ajuda a otimizar o rendimento de carteiras de investimento, explica Vanise Zimmer, uma das fundadoras.
Em outra vertente, o biólogo Gabriel Ribenboim fundou o Impact Bank, em 2021, para ajudar ONGs a acessar recursos para ações de impacto em escala para promover melhoria do meio ambiente e da vida de populações em florestas.
Em resumo, a ideia é facilitar o caminho dessas instituições até um capital que atualmente está em busca de práticas ESG para financiar, seja através de fundos, instituições internacionais ou doações. A empresa tem 15 mil clientes e fila de espera de 35 mil para abrir conta.
— Acabamos de investir mais R$ 2 milhões para renovar nosso aplicativo e sistemas de tecnologia para trazer mais clientes — diz Ribenboim.
Movimento de US$ 17 bi por ano
Além de conta digital, há cartão de crédito internacional e uma plataforma de investimentos com fundos selecionados por trazerem algum impacto à sociedade. O potencial desse mercado, segundo Ribenboim, entre créditos verdes, empreendedorismo social e doações, chega a US$ 17 bilhões por ano no Brasil.
Só para a chamada bioeconomia, estima-se que há US$ 1,3 bilhão para serem aplicados por ano no país. O Impact Bank também funciona como uma comunidade que mostra novos caminhos para ações de impacto socioambiental, onde os participantes aprendem com a experiência dos outros.
A tecnologia vem ajudando a aumentar o número de bancos de nicho, com o surgimento de empresas que oferecem os serviços de estrutura bancária por trás deles. É o que se chama bank as a service. São empresas que já têm licença do Banco Central e tornam mais ágil — e mais barata —a abertura desses bancos.
— São estruturas tecnológicas de serviços financeiros, em que os empreendedores colocam suas marcas — diz Bruno Diniz, especialista em sistema financeiro da consultoria de inovação Spiralem. — Isso possibilitou o crescimento desse tipo de negócio.
''Marketplace gamer'
Os sócios Willian Santos e o Felipe Diesel fundaram, em 2020, o Yoursbank com foco no público de até 18 anos em sua primeira experiência bancária. Os adolescentes têm acesso a Pix e cartão de crédito pré-pago. Também criam objetivos financeiros, compram em um marketplace gamer e aprendem educação financeira por meio de trilhas gamificadas.
Os pais acompanham como os filhos usam o dinheiro. A empresa quer fechar este ano com 150 mil clientes — já são 120 mil até agora.
— Os bancos tradicionais até possuem contas para menores de idade, mas são vinculadas às contas dos pais, não se comunicam da maneira com que o jovem está acostumado e nem atendem suas demandas — explica Santos, acrescentando que o banco digital já recebeu R$ 6,2 milhões em aportes de investidores anjo e do Corporate Venture (CVC) do Banco do Brasil.
Gabriel Rossi, sociólogo e professor de marketing da ESPM, avalia que há uma demanda crescente na sociedade por questões sociais que os bancos de nicho conseguiram captar ao desenvolver habilidades para atender necessidades desses grupos com produtos financeiros específicos. Mas não basta só empunhar bandeira: precisam oferecer bons serviços para ganhar a confiança dos clientes, alerta:
— A reputação do setor financeiro é afetada pelo histórico de serviços ruins. Além disso, esses bancos precisam conversar de forma autêntica com seus clientes para demonstrar que conseguem ter impacto e trazer benefícios para a sociedade.