O mercado de capitais brasileiro caminha para encerrar seu terceiro ano consecutivo sem qualquer oferta pública inicial (IPO, na sigla em inglês) de ações na Bolsa de São Paulo, a B3. Primeiro, foi a inflação pós-pandemia, que puxou os juros para cima em todo o mundo e tornou os investimentos em renda fixa mais atraentes que as ações.
A brusca virada de chave levou várias companhias candidatas à abertura de capital a adiar os planos. Agora, um cenário de incertezas em relação à economia dos EUA em meio a uma conturbada eleição presidencial e a maior preocupação com o quadro fiscal brasileiro impedem estreias na Bolsa.
Para manter seus projetos, as empresas têm recorrido aos papéis de crédito privado, emitindo mais debêntures (títulos de dívida) e certificados de recebíveis. Esses instrumentos financeiros, com os quais as firmas levantam recursos junto a investidores mediante remuneração pré-determinada, bateram recorde de emissão no primeiro semestre.
As emissões de debêntures somaram R$ 206,7 bilhões entre janeiro e junho, o maior patamar da série histórica, segundo dados da Anbima. O número de operações no período passou de 155 em 2023 para 289 em 2024, alta de 86,5%. O de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) subiu 69,5%, totalizando 256 emissões com R$ 31,4 bilhões captados neste ano.
Já os lançamentos de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) foram de 72 no primeiro semestre de 2023 para 76 neste ano, quando somaram R$ 19,4 bilhões.
Em 2021, maior número em dez anos
A última vez em que a B3 viu um IPO foi em 2021, quando a taxa básica anual de juros (Selic) caiu a 2%. Naquele ano, 46 empresas abriram capital, o maior número em mais de uma década. A última da lista foi o Nubank, que realizou dupla listagem na Bolsa brasileira e na de Nova York, em dezembro daquele ano. Nove meses depois, o banco digital decidiu tirar os papéis da B3.
Assim como aconteceu em outros países, a inflação levou o Banco Central do Brasil (BC) a elevar os juros nos últimos anos. A Selic se manteve por um ano em 13,75%, entre agosto de 2022 e 2023, reduzindo a demanda por ações. Muitas companhias resolveram colocar o IPO na geladeira para não correr o risco de ter papéis avaliados muito abaixo do desejado.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) registrou 27 desistências de IPOs em 2022 e uma em 2023, da China Three Gorges. Na época, fontes de mercado apontaram que a multinacional asiática de energia pretendia levantar por aqui o equivalente a US$ 1 bilhão (hoje R$ 5,6 bilhões) com a oferta primária. Procurada, a companhia não quis comentar.
Freio na queda da Selic
A interrupção do ciclo de cortes da taxa básica de juros (atualmente em 10,5%) no mês passado frustrou de vez as previsões de 20 possíveis IPOs na Bolsa brasileira neste ano. No início do ano, analistas de mercado viam 2024 como o momento de virada do mercado de ações, com expectativa de juros em um dígito até dezembro.
O cenário mudou. A inflação persistente nos EUA adiou duas vezes o início do corte do juro na maior economia do mundo, que segue no patamar mais alto em duas décadas, limitando a ação de outros bancos centrais.
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O do Brasil teve adicionado à deterioração do cenário externo, com valorização internacional do dólar em meio às incertezas da campanha eleitoral americana, a crescente desconfiança do mercado em relação à política fiscal do governo Lula, com repetidos ataques do presidente à autonomia do BC às vésperas de indicar o sucessor do atual líder da autoridade monetária, Roberto Campos Neto.
O resultado é a Bolsa brasileira com um dos piores desempenhos no mundo. Desde janeiro, o Ibovespa, principal índice da B3, acumula queda da ordem de 4%. E analistas não veem janela favorável a novas ações se abrir tão cedo.
— O juro elevado, em dois dígitos, afugenta o investimento em Bolsa, mas o debate sobre a independência do BC e declarações de Lula desafiando a postura da instituição também geram desconforto — observa Carlos Carvalho, sócio da Kínitro Capital.
Bolsa "muito barata'
Fernando Siqueira, head de Research da Guide, explica que, nessa dinâmica, “a nossa Bolsa está muito barata”, o que faz investidores baixarem a precificação de novos papéis. Um indício é o alto volume de saques de fundos multimercado, que alocam aplicações de cotistas em renda fixa e variável (veja na próxima página).
— As pessoas não estão aceitando pagar valuation (valor do ativo) alto por nenhuma empresa. Se tenho uma empresa que vale 10, mas sei que as pessoas estão dispostas a pagar 6, é melhor eu esperar. E os fundos multimercado estão tendo muito resgate, o que indica que não há dinheiro disponível no mercado para alocar em coisas novas — diz.
Flavio Conde, analista da Levante Investimentos, ainda cita que “muitos investidores institucionais ficaram traumatizados” com o desempenho ruim de empresas após recentes IPOs. Em cinco anos, diversos papéis tiveram queda significativa na cotação. A ação da companhia de bioenergia Raízen, por exemplo, que foi precificada no IPO de agosto de 2021 em R$ 7,40, vale hoje R$ 3,06. Já a varejista de artigos para animais Petz, que estreou na Bolsa a R$ 13,75 no fim de 2020, é negociada a R$ 3,92.
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A solução adotada por diversas companhias para captar recursos tem sido as operações de crédito privado. Um exemplo é a rede de franquias de depilação Espaçolaser, cujas ações despencaram mais de 90% após o IPO de 2021, um dos últimos daquela onda.
A alta dos juros também fez disparar o endividamento da empresa, que foi muito afetada pela pandemia e passa por uma reestruturação financeira baseada em debêntures. Em fevereiro, fez sua terceira emissão, de R$ 733 milhões. A CEO da empresa, Magali Leite, comemorou a ampliação da base de investidores no papel:
— Não saiu nenhum credor da nossa base. Pelo contrário, entraram outros, que chancelaram nosso plano futuro.
Em maio, a farmacêutica Cimed captou R$ 600 milhões com papéis similares para reforçar o capital de giro e manter o investimento em expansão de fábricas e aquisições de outros negócios.
A companhia, que não quis comentar o assunto, vinha sendo observada por analistas como uma das possíveis candidatas a um IPO em 2024, assim como a Iguá Saneamento, que já emitiu R$ 6,5 bilhões em debêntures desde julho do ano passado. O diretor financeiro Felipe Fingerl, diz que a empresa de concessões segue monitorando o cenário à espera do momento favorável para ir à Bolsa:
— A Iguá não está desesperada por esse recurso (do IPO), não temos necessidade, nem para liquidez ou para resolver qualquer problema. Estamos monitorando o mercado, esperado janela melhor.
‘Há muitos ruídos’
Rodrigo Marcatti, economista e CEO da Veedha Investimentos, não vê ambiente favorável a IPOs ainda este ano, já que o quadro se mostra desafiador lá fora e no Brasil:
— Quando a gente olha para o cenário local, há muitos ruídos políticos, histórias envolvendo tentativas de interferência política nas estatais, o que faz o investidor estrangeiro fugir da Bolsa brasileira.
Cassiana Garcia, planejadora financeira e sócia-fundadora da The Hill Capital, explica que há riscos para as empresas num IPO que as deixam mais cautelosas em tempos turbulentos, como custos elevados na operação, perda do controle da empresa, exposição pública pela obrigatoriedade de divulgar informações financeiras. Na emissão de um título de dívida, o ônus é menor e ainda é possível obter no mercado um custo de capital abaixo do das linhas de crédito dos bancos:
— Temos setores da economia que são beneficiados, na emissão de dívida, com a isenção de Imposto de Renda para pessoa física, como infraestrutura, setores ligados ao agronegócio e imobiliário. Isso torna ainda muito mais atrativo para o investidor a compra do título de dívida. É necessário que o risco, do ponto de vista de crédito, de risco, também seja ponderado por ele.
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Pedro Leite, responsável pela área de mercado de capitais do Santander, admite que, para o clima melhorar no mercado de ações brasileiro é necessário uma queda dos juros nos EUA, o que estimularia investidores internacionais a buscar oportunidades em Bolsas de países emergentes.
Mas ele destaca a operação de privatização da Sabesp — por meio da emissão de novas ações (follow-on) da empresa, que já tem capital aberto, vista como a principal transação do mercado acionário brasileiro no ano — , que pode ajudar a animar outras companhias abertas a captar na Bolsa ainda em 2024. A operação, que deve ser concluída hoje, teve uma demanda recorde de quase R$ 187 bilhões pelas novas ações.
— O divisor de águas é o corte de juros nos EUA para reduzir a relação entre risco e retorno. Para isso, a economia americana tem que desacelerar. Mas a oferta da Sabesp tem relevância global. Se investidores tiverem um retorno interessante daqui para frente, conforme esperamos, isso deve aguçar o apetite de outras empresas para follow-on ainda este ano, provavelmente a partir de setembro — avalia Leite.
‘Novas captações em vista’
Desde janeiro, seis empresas abertas fizeram ofertas subsequentes de ações no país. Uma delas foi a da Vulcabras, que levantou R$ 501 milhões. Em nota, a fabricante de calçados informou que “não tem novas captações em vista” e que, “em função das taxas de juros permanentemente altas, vem sendo financiada por meio da sua própria geração de caixa operacional”.
Outras operações semelhantes de destaque foram as de Energisa (R$ 2,5 bilhões) e Grupo Pão de Açúcar (R$ 704 milhões).
Colaborou Alexandre Rodrigues