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Economia Energia

Furnas pode definir racionamento, diz Kelman, ex-presidente de Aneel e ANA

Engenheiro diz que patamar mínimo do reservatório da hidrelétrica, hoje em 15% por questões ambientais e sociais, pode impactar outras usinas na região
HidrelétricFurnas: nível dos reservatórios do centro-sul do país já estão em níveis mais baixos que os que levaram à crise que levou ao racionamento de energia em 2001 Foto: Agência O Globo
HidrelétricFurnas: nível dos reservatórios do centro-sul do país já estão em níveis mais baixos que os que levaram à crise que levou ao racionamento de energia em 2001 Foto: Agência O Globo

BRASÍLIA — Um dos responsáveis pela investigação das causas da crise de energia em 2001, o engenheiro, hidrólogo e professor Jerson Kelman afirma que o governo precisa rever a restrição do lago de Furnas (MG), sob o risco de ser necessário decretar novo racionamento de eletricidade. O especialsiat é ex-presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Nacional de Águas (ANA).

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Atualmente, a represa de Furnasb não pode ter um nível de água abaixo de 15%. Isso reduz a geração de energia nessa hidrelétrica e também a água que desce na cascata de usinas da Bacia do Rio Paraná, de Furnas a Itaipu. Cada metro cúbico de água liberado do reservatório de Furnas produz 1,6 quilowatt-hora de eletricidade na cascata de usinas.

Tecnicamente, as hidrelétricas operam sob as chamadas restrições hidráulicas. Precisam manter níveis mínimos ou vazões mínimas, para atender demandas sociais e ambientais, de agricultura ou navegação, o que acaba gerando impactos no setor elétrico.

A usina de Itaipu, por exemplo, não pode variar muito o nível ao longo do dia, por acordo entre o Paraguai e a Argentina. Para Kelman, é preciso rever essas restrições.

Os principais trechos da entrevista

Problema de governança

“Essa crise mostra que houve, sim, um problema de governança entre ONS (Operador Nacional do Setor Elétrico), ANA, Aneel e Ministério de Minas e Energia. Porque muitas das restrições às operações dos reservatórios, que são concebidas para condições normais, continuaram em vigor mesmo quando já havia sinais de que estávamos entrando numa crise grave."

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"Demorou três meses para admitir a redução da vazão mínima de Xingó e Sobradinho. Na ótica do setor elétrico, desperdiçou-se água. Três meses, em condições normais, não tem nada demais. Em condições excepcionais, três meses é muito tempo, porque você jogou água fora."

Deslocamento do consumo nas horas de pico e campanha de esclarecimento reduzem chance de racionamento, diz Kelman Foto: Arquivo
Deslocamento do consumo nas horas de pico e campanha de esclarecimento reduzem chance de racionamento, diz Kelman Foto: Arquivo

"Um aprendizado dessa crise é que é preciso melhorar a governança dos usos múltiplos das águas. Depois que foi criada a Creg (Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética), ela tem agido rápido.”

Risco de apagão

“O sistema opera continuamente com uma reserva girante. É como se fosse um tanque de reserva de um automóvel. O que as simulações mostram é que em novembro essa reserva girante, na hora do pico, é quase toda usada."

"Por isso, pode chegar a um momento em que se acionam todas as usinas e não atende a demanda. Esse, sim, é o apagão, que é imprevisível, é diferente de um racionamento, que manda desligar."

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"Apagão não é programado. Para evitar isso, você desloca o consumo das horas de maior consumo. A medida mais importante para evitar apagão é mudar a forma de consumo, deslocar o consumo das horas de ponto para a madrugada.”

“Não afasto a possibilidade de que tenha que ser feito racionamento, mas, se eu tivesse no comando, não faria agora”

Jerson Kelman
Ex-presidente da Aneel e da ANA

Melhora na comunicação

“Tem que melhorar a comunicação. Um passo já foi dado. O governo reconhece que a situação é séria, o próprio presidente da República falou que todos devem cooperar. É preciso levar essa mensagem e não ter vergonha".

"A situação hidrológica atual é um pouco pior que a situação pior que já tínhamos vivenciado, na primeira metade dos anos de 1950. O período crítico foi de 1950 a 1956. Os últimos sete anos são muito parecidos com esse período. E é muito natural que o setor tenha sido planejado para aguentar o tranco da repetição daquela seca extrema que aconteceu nos anos 1950."

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"Nessa circunstância, é natural, você raspa o tacho, anda no fio da navalha. O governo não precisa ter constrangimento em reconhecer isso e dizer para a população que fenômenos parecidos estão acontecendo em outros países, como no Chile. Os governantes de outros países têm sido muito transparentes com suas populações.”

Racionamento

“Ainda é cedo para racionamento. Não afasto a possibilidade de que tenha que ser feito racionamento, mas, se eu tivesse no comando, não faria agora. Não tem sentido começar a fazer já um racionamento se há uma chance de passarmos sem necessidade disso.”

O que precisa ser feito

“Do lado da oferta, as principais medidas já foram tomadas, que foi flexibilizar as restrições hidráulicas da operação dos reservatórios das usinas. Com frequência, as usinas eram obrigadas a gerar energia porque tinha uma restrição de soltar água para jusante (abaixo)."

"Mas isso não está completo ainda, falta terminar. Ainda está vigente uma resolução da ANA que determina que o reservatório de Furnas não pode baixar de 15% do volume útil. Se essa restrição se mantiver, a chance de ter racionamento é enorme."

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"Do lado da demanda, foi a iniciativa recente, que carece detalhamento, de incentivar a redução voluntária do consumo de energia. Se você deslocar o consumo de energia das horas de ponta (pico, durante a tarde) para a madrugada, por exemplo, e uma campanha de esclarecimento, há boa chance de passarmos pela crise sem necessidade de uma ação obrigatória de corte de carga involuntária.”

Novas medidas

“É preciso flexibilizar ainda mais as restrições operativas das usinas hidrelétricas. Ainda está em vigor resolução sobre regras operativas da Bacia do Rio São Francisco e da Bacia do Rio Grande, que é o caso de Furnas e Mascarenhas de Moraes, que devem ser flexibilizadas. Não tem sentido ter água em estoque e não usar essa água por um interesse local.

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Tem ainda algumas restrições relacionadas a Itaipu. No caso de Itaipu, há que se negociar com paraguaios e argentinos, para que permitam a flutuação do nível do Rio Paraná a jusante de Itaipu mais intensamente do que o normal.”