'Govtech' quer mapear apagão tecnológico das prefeituras que ainda vivem na idade do papel

Start-up de soluções para a gestão pública lança hoje plataforma para suprir falta de diagnóstico sobre digitalização nos municípios do país
Rodolfo Fiori sócio da Gove, start-up voltada para aumentar a eficiência do setor público Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

RIO — Completados seis meses desde que foi sancionada, a Lei do Governo Digital acaba de entrar em vigor para os 5.570 municípios do país, mas a maioria ainda vive na idade do papel, numa espécie de apagão tecnológico e também de informações sobre o tema.

Não é difícil constatar as deficiências estruturais de prefeituras, principalmente as de cidades pequenas, para cumprir a nova legislação, que estabelece diretrizes para a transformação digital da gestão pública.

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Esse passo pode aumentar a eficiência orçamentária, o acesso a serviços públicos e a transparência. No entanto, faltam informações precisas sobre o acesso das prefeituras a soluções tecnológicas.

Para preencher esta lacuna um mapeamento inédito começa a ser feito nesta segunda-feira pela Gove, uma govtech (como são chamadas as start-ups de soluções para a gestão pública) que já atuou em mais de 150 cidades desde 2016.

Fundada em 2012 como uma plataforma para motoristas de táxi, depois aberta para autônomos, a 99 se tornou o primeiro unicórnio brasileiro em janeiro de 2018, após ser adquirida pela chinesa Didi Chuxing em negócio avaliado em US$ 1 bilhão. Foto: REUTERS/Paulo Whitaker
O banco digital Nubank cresceu rapidamente tendo um cartão de crédito solicitado por aplicativo no celular como cartão de visitas. Já vale mais de US$ 30 bi e chamou a atenção recentemente ao receber aporte de US$ 500 milhões do bilionário americano Warren Buffett, e outros US$ 250 milhões da americana Sands Capital com Verde Asset e Absoluto Partners. Foto: Urbano Erbiste / Agência O Globo
A Stone ganhou destaque por desbravar o mercado de máquinas de cartões antes dominado por gigantes e conquistar o seu espaço. Porém, sua classificação como unicórnio é controversa, pois alcançou a marca de US$ 1 bilhão em valor de mercado após seu IPO, em outubro de 2018. Algumas listas a deixam de fora, por considerarem unicórnios apenas empresas de capital fechado. Foto: Agência O Globo
A Loggi transformou o mercado de courrier, colocando os clientes que desejam entregar objetos em contato direto com os motoboys. Foi dessa forma que a empresa fundada no Brasil pelo francês Fabien Mendez conseguiu investimento de US$ 150 milhões do SoftBank em junho do ano passado, conquistando o título de unicórnio. Foto: WILLIAN MOREIRA / Agência O Globo
A Gympass funciona como um Spotify do exercício físico. Por uma assinatura mensal, os usuários têm acesso a uma rede de milhares de academias parceiras. O modelo chamou a atenção de investidores, que aportaram US$ 300 milhões na companhia em junho de 2019, transformando-a em mais um unicórnio brasileiro. Foto: Divulgação
O QuintoAndar nasceu em 2013 com a missão de desburocratizar os aluguéis de imóveis no país. Para os inquilinos, nada de fiador ou caução; e aos proprietários a garantia do pagamento na data estipulada, mesmo que o locatário atrase. Em setembro do ano passado, recebeu aporte de US$ 250 milhões e superou os US$ 1 bilhão em valor. Foto: Divulgação
Com sede em Curitiba, a Ebanx realiza o processamento de pagamentos em reais para empresas estrangeiras, como Spotify e Airbnb. Em outubro do ano passado recebeu investimento do fundo de private equity FTV, se tornando primeiro unicórnio da Região Sul do país. Foto: REUTERS/Steve Marcus
Criado em 2011 para facilitar o pedido de entrega de comida em restaurantes, o iFood se tornou unicórnio em novembro de 2018, após receber aporte de US$ 500 milhões. O serviço ganhou importância durante a pandemia, mas também críticas pela situação dos entregadores. Foto: Divulgação
A segunda startup a se tornar unicórnio no ano foi a da holding 2TM, o Mercado Bitcoin. É o primeiro unicórnio do segmento de criptoativos no Brasil, com valor de mercado avaliado em US$ 2,1 bilhões. O feito ocorreu após a empresa receber um investimento de US$ 200 milhões do Softbank. Foto: Divulgação
A carioca VTEX oferece serviços que estão por trás dos sites de comércio eletrônico, ajudando os varejistas a converterem vendas. Com o aporte recebido nesta semana, se tornou o 11º unicórnio brasileiro. Foto: CJPress / Agência O Globo
O negócio da Loft é comprar, reformar e revender imóveis, mas na escala dos negócios digitais. Apenas no ano passado foram mais de mil apartamentos residenciais negociados. Fundada em 2018, levou menos de dois anos para se tornar unicórnio, alcançando o posto em janeiro deste ano. Foto: Loft/Facebook
A primeira do ano a integrar o grupo de unicórnios do ano foi a curitibana MadeiraMadeira. Após receber um investimento de US$ 190 milhões, a empresa atingiu valor de mercado de US$ 1 bilhão. O aporte foi liderado pelo fundo Softbank, além dos gestores Dynamo, Flybridge e Monashees. Na foto, Marcelo Scandian, Daniel Scandian e Robson Privado, da MadeiraMadeira. Foto: MadeiraMadeira/Divulgação

A pesquisa mais recente sobre digitalização nas cidades é de 2019, feita pelo Cetic, ligado ao Comitê Gestor da Internet do Brasil, e o retrato não era animador. Mais de um quarto não tinha infraestrutura básica, como acessos locais a conexão com fibra óptica.

Apenas 21% das prefeituras tinham alguma estratégia de digitalização e 22% contavam com planos de segurança de dados. Só 16% usavam algum tipo de sistema de organização de dados para subsidiar a tomada de decisões orçamentárias.

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Em 42% das prefeituras havia apenas departamento de Tecnologia da Informação (TI). Em 2015, eram 41%, um sinal de como o tema tem dificuldade de avançar, principalmente em cidades pequenas.

Para investigar com mais profundidade esse cenário, a Gove desenvolveu um questionário a partir de metodologias internacionais de avaliação, que será disponibilizado na internet a partir desta segunda-feira para que gestores das prefeituras informem dados sobre o seu grau de digitalização.

Como incentivo à participação, a plataforma do Diagnóstico de Transformação Digital Municipal gera, a partir das respostas, um relatório com uma avaliação do grau de maturidade digital da cidade em seis dimensões:capacidade institucional, dados, foco no usuário, pessoas e competências, infraestrutura e serviços digitais. 

O relatório gerado a partir do questionário vai estabelecer comparações entre a situação digital daquele município e a média de rupos de cidades, como as de mesmo tamanho no país ou vizinhas no mesmo estado. Além disso, haverá sugestões para um plano de ação da prefeitura participante.

O projeto foi lançado nesta segunda-feira no evento on-line 'Governos do Futuro 2021', promovido pela Gove com gestores de diferentes cidades trocando experiências sobre transformação digital e eficiência fiscal.

Gestores municipais poderão pedir acesso à pesquisa, que vai durar até 31 de dezembro, neste link .  Haverá um processo de validação para garantir que apenas um gestor de cada cidade responda o questionário.

Baixa capacidade de investimento

Enquanto empresas investem cada vez mais em análise de dados para aumentar sua produtividade, as prefeituras têm pouca capacidade de fazer isso, avalia Rodolfo Fiori, cofundador da Gove:

— Transformação digital é muito mais do que sair do papel e ir para o computador. Municípios são os que prestam os serviços públicos mais próximos dos cidadãos. Geram milhões de dados diariamente, só que eles estão presos em silos, em diversos sistemas aos quais muitas vezes os gestores não conseguem acessar ou não têm interfaces para consultar e transformar os dados em informação.

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A Gove, que recebeu um investimento de R$ 8 milhões de um fundo de private equity em outubro do ano passado, desenvolveu uma plataforma de inteligência que reúne os dados financeiros mais relevantes das prefeituras em que atua para auxiliar gestores a racionalizar despesas, aperfeiçoar processos de licitação, aumentar a arrecadação e identificar novas fontes de financiamento.

A empresa estima que cada R$ 1 investido pelas prefeituras nessa gestão de dados resulta em R$ 10,4 a mais no caixa por ano.

Rodolfo Fiori, presidente da Gove, especializada em gestão pública: start-up desenvolveu plataforma que ajuda prefeituras a aumentarem eficiência de gastos Foto: Edilson Dantas

A plataforma da Gove é capaz, por exemplo, de cruzar informações do município com outros bancos de dados, o que pode a ajudar, por exemplo, a identificar empresas não formalizadas que não pagam impostos municipais.

Ou então apontar fornecedores de materiais que cobram preços menores em cidades vizinhas e podem tornar licitações mais competitivas. Ou ainda identificar linhas de financiamento para programas específicos que não entram no radar dos gestores locais.

— Estamos falando de dinheiro que pode ser reinvestido em serviços públicos diretos ao cidadão — diz Ricardo Ramos, outro sócio-fundador da Gove.

Ele continua:

— No Brasil, 90% das cidades têm menos de 50 mil habitantes. São lugares em que não só a infraestrutura é limitada, mas a cultura das pessoas ainda não está conectada à tecnologia no dia a dia.

'Dinheiro não é principal barreira'

Segundo Ramos, a baixa digitalização das cidades pequenas tem relação com dificuldades orçamentárias e estruturais, mas também com restrições burocráticas para investir em inovações.

— Algumas soluções vão ser caras, mas muita coisa hoje é acessível. As govtechs vêm para resolver ineficiências no setor público. Não acho que dinheiro seja a principal barreira — diz Ramos.

Fiori observa que a maior parte das pequenas cidades não pôde funcionar com servidores em home office durante a pandemia por falta de estrutura básica, como sistemas de teletrabalho e laptops.

Em relação às diretrizes de governo digital, que avança mais rápido na União e nos estados, ele vê um atraso muito grande nas cidades:

— Uma parte grande dos municípios não regulamentou ainda a Lei de Acesso à Informação (LAI) ou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A Lei de Governo Digital não está nem sendo discutida ainda nos municípios, muitos nem sabem. Depois de conhecerem, os municípios precisarão traçar um plano.