Exclusivo para Assinantes
Economia Prática ESG

Indústria têxtil investe em reciclagem e puxa o fio da sustentabilidade contra o modelo ‘fast fashion’

Sob pressão, setor busca inovações como o fio reciclado, que precisa ganhar escala para compensar impacto ambiental de peças cada vez mais descartáveis
Funcionária examina novelos na fábrica da EuroFios, que recicla roupas usadas em parceria com a Malwee no interior de Santa Catarina: projeto-piloto deu origem a 1.500 blusões. Próximo passo é dar escala à tecnologia Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Funcionária examina novelos na fábrica da EuroFios, que recicla roupas usadas em parceria com a Malwee no interior de Santa Catarina: projeto-piloto deu origem a 1.500 blusões. Próximo passo é dar escala à tecnologia Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

RIO, BLUMENAU E JARAGUÁ DO SUL (SC) - Além de um caminhão de lixo de roupas queimadas ou despejadas em lixões a cada segundo, segundo calcula a Ellen MacArthur Foundation — que atua em prol da economia circular —, a indústria têxtil produz resíduos que podem levar mais de dois séculos para se decomporem no ambiente.

A pressão crescente de investidores, consumidores e reguladores empurra o setor para iniciativas capazes de reduzir o impacto ambiental provocado pelo fast fashion , que impulsiona o consumo acelerado de peças de vestuário quase descartáveis, e dita tendência também entre varejistas.

Aluguel on-line: Riachuelo, Renner e Arezzo entram no mercado de aluguel e brechó

A volta da Mesbla: Após 23 anos, icônica loja de departamentos retorna como marketplace

De Farm a Hering: Magalu lança espaço para varejo de moda dentro do superapp. E terá marca própria

Hoje, menos de 1% das roupas usadas é utilizado na produção de novas. Para se tornar mais sustentável, a cadeia da moda investe em novas tecnologias — de corantes naturais à reciclagem de fios, passando pela redução do uso de água.

Pedaços de malhas usadas chegam para recliclagem à fábrica da EuroFios, em Blumenau, que desenvolveu o projeto-piloto com a malharia Malwee Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Pedaços de malhas usadas chegam para recliclagem à fábrica da EuroFios, em Blumenau, que desenvolveu o projeto-piloto com a malharia Malwee Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

A catarinense Malwee chegou a uma fórmula que combina fios fabricados a partir de resíduos de produção e de roupas usadas, além de outros materiais reciclados, para produzir um moletom dupla-face, inicialmente de cor cinza.

Para reforçar o posicionamento anti- fast fashion , os 1.500 blusões com capuz da coleção-piloto poderão ser levados para casa por quem entregar cinco peças usadas em uma ação da marca na Avenida Paulista, em São Paulo, na próxima terça.

Uma pilha de três metros de altura de roupas usadas será montada próxima ao número 1230, em referência às montanhas de descartes têxteis em lixões do Deserto do Atacama, no Chile, que ganharam evidência por receberem 40 mil toneladas de peças usadas ou não vendidas por ano.

Viável no longo prazo

Por trás da ação de marketing está o investimento de cerca de R$ 500 mil no desenvolvimento da tecnologia, uma das iniciativas da empresa para cumprir metas que estabeleceu para 2030, como promover a reciclagem e a logística reversa em toda sua cadeia de valor e ter 100% das roupas produzidas com insumos e processos sustentáveis.

Parceria: Hering e Fábula, grife infantil da Farm, lançam coleção juntas

Taise Beduschi, gerente de ESG (sigla em inglês para iniciativas ambientais, sociais e de governança) da Malwee, explica que, superados os obstáculos técnicos para transformar roupas usadas em um fio para constituir uma nova, falta ganhar escala, organizar a coleta e desenvolver outros produtos e em outras cores:

— Temos de ver que tecidos podem ser usados para fazer os novos, quais podem ser produzidos, como será a coleta (de roupas usadas), se vamos optar por trocar ou vender os itens que vamos produzir. São muitas adaptações, mas o importante é o primeiro passo.

Guilherme Weege, CEO da Malwee, acredita que a nova produção será viável economicamente no longo prazo:

— Hoje, (o moletom) não é mais barato que uma peça nova, mas, daqui a dez ou 15 anos, acredito que novas tecnologias vão trazer o preço para baixo. Dá mais trabalho quando lançamos, tem a equipe, o maquinário, o investimento em inovação. Por isso, a conta é sempre fazer algo escalável.

Estratégia: Marcas mais caras 'somem' nos supermercados, e empresas mudam embalagens para não prejudicar vendas

Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), diz que há uma grande diversidade de novas tecnologias e materiais sustentáveis em desenvolvimento no país, com potencial de ganharem escala em pouco tempo:

— Hoje, 84% do algodão produzidos no Brasil são certificados. Há uns 15 anos, essa fatia era talvez de 10%. Essas chamadas fibras preferenciais já são um quinto do mercado mundial de fibras têxteis.

Fio reciclado resultante da tecnologia desenvolvida pela EuroFios e pela Malwee no interior de Santa Catarina. Primeiro produto é um moletom Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Fio reciclado resultante da tecnologia desenvolvida pela EuroFios e pela Malwee no interior de Santa Catarina. Primeiro produto é um moletom Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

O movimento ESG tem impulsionado transformações também em grandes grupos do varejo de moda, diz Yamê Reis, idealizadora do Rio Ethical Fashion e coordenadora de Design de Moda no IED Rio. Acaba funcionando como um “farol” para um mercado majoritariamente composto de pequenas empresas, diz ela:

'Clique djá' para comprar: Varejistas aderem ao live shopping na internet

— Há uma movimentação que aponta uma tendência em direção a têxteis mais sustentáveis. Impacta os fornecedores, mas ainda está longe de ser um movimento de massa. No entanto, já vemos abertura para roupas de segunda mão, revenda, consertos de roupas, uso de novos materiais.

A inovação nas redes de lojas ganhou impulso no mundo pouco antes da pandemia.

— O Brasil está atrasado nesse processo. É uma indústria muito grande, a quinta maior em confecção no mundo. Isso quer dizer que nosso resíduo também é. É preciso criar regulamentação para o setor têxtil na Política Nacional de Resíduos Sólidos — diz Yamê.

A Renner terminou o ano passado com 81,3% de seu vestuário classificados como menos impactantes ambientalmente, superando a meta de 80% traçada em 2018. Tem quase todo (99,15%) o algodão de seus itens de cultivo sustentável certificado.

AliExpress, Shopee e outras plataformas na mira : Governo prepara MP para combater 'camelódromo digital'

Área de costura e confecção da Malwee em Jaraguá do Sul. Por ano, são produzidas cerca de 45 milhões de peças Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Área de costura e confecção da Malwee em Jaraguá do Sul. Por ano, são produzidas cerca de 45 milhões de peças Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

Todos os fornecedores da rede têm certificação socioambiental e recebem da Renner consultoria para reduzirem impactos, explica Eduardo Ferlauto, gerente geral de Sustentabilidade da companhia.

Ele conta que os parceiros passaram a enxergar os ganhos para a cadeia porque o resíduo virou receita, vendido para fabricar novo tecido.

Valor ambiental

O executivo cita o programa Produção Mais Limpa, em parceria com a USP e a Ellen MacArthur Foundation, iniciado com jeans e depois estendido à produção de outros tecidos reciclados. A Youcom, grife de moda jovem da Renner com cem lojas próprias no país, tem pontos de coleta de jeans usados em todas elas.

O moletom do projeto DES.A.FIO de reciclagem da fábrica da Malwee, em Santa Cataraina, é o primeiro feito a partir de vários tipos de tecidos de roupas usadas Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
O moletom do projeto DES.A.FIO de reciclagem da fábrica da Malwee, em Santa Cataraina, é o primeiro feito a partir de vários tipos de tecidos de roupas usadas Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

— Peças entregues em nossas lojas passam por triagem, podendo ir para doação, transformação ou reciclagem. Recolhemos dez toneladas de roupas desde 2018, grande parte usada em novas peças — conta Ferlauto. — Chegam ao consumidor com mesma qualidade, sem acréscimo de preço, mas com valor ambiental.

Nordeste-se: Para avançar no Nordeste, marcas se adaptam com tapioca, suco de caju e malhação com música junina

A Riachuelo, em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), faz pesquisas para a elaboração de um novo fio constituído a partir de resíduos de sua produção própria e de roupas usadas descartadas por consumidores em suas lojas. Já há tecnologias nessa área em uso, como a que produz poliéster a partir de garrafas PET, apoiadas em processos para diminuir o consumo de água e energia.

Para gastar menos água, em vez de lavagem, a Malwee usa laser para produzir efeitos na textura do jeans Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Para gastar menos água, em vez de lavagem, a Malwee usa laser para produzir efeitos na textura do jeans Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

Com João Foltran, fundador da John John, como diretor criativo, o grupo La Moda, de Santa Catarina, investe R$ 10 milhões na criação da Jeanslosophy, uma marca de jeans que se propõe a usar pouca água, algodão 100% orgânico e corantes naturais de maracujá e açaí, resíduos de mandioca e de fécula de batata.

Varejo do futuro: Empresas se adaptam para cliente comprar on-line ou na loja

A Inditex, dona da Zara assinou um acordo de mais de € 100 milhões de euros para comprar 30% do tecido reciclado a ser produzido nos próximos três anos pela finlandesa Fibra Infinita. Com isso, a companhia poderá abrir sua primeira fábrica de grande capacidade em 2024 e começar a comprar em grande escala fibras premium de roupas descartadas.

Com investimento de R$ 1,1 milhão, a Arezzo&Co vai transformar sua marca sustentável, a Alme, em um laboratório de inovação para chegar a novas soluções que reduzam o impacto ambiental da produção de calçados, como o couro ecológico e o reuso dos resíduos de solas.

Hoje, a marca já usa algodão de fios oriundos das aparas da indústria têxtil nos revestimentos dos sapatos e material de cana-de-açúcar para sola e palmilhas.

— Por mais que o portfólio seja menor, na contramão do fast fashion , ganhamos na fidelidade dos clientes. Também estamos com um projeto novo de rastreabilidade em blockchain (tecnologia de validação digital) para acompanhar toda a cadeia de produção e seus fornecedores — diz Suelen Joner, diretora de Sustentabilidade da Arezzo&Co.

Entenda como funciona a tecnologia de reciclagem têxil

Classificação: A reciclagem de roupas na fábrica da Malwee, em Jaraguá do Sul (SC), começa com uma separação manual das peças por tons. Não precisam ser exatamente da mesma cor, mas semelhantes. Também são retirados aviamentos, como etiquetas, zíperes etc. As roupas são agrupadas em grandes fardos.

Preparação: Já classificadas, as peças são rasgadas em pedaços menores, para facilitar o processo de desfibramento nas máquinas. O tecido é desfiado várias vezes até virar uma fibra têxtil, cuja aparência é semelhante à do algodão.

Novo fio: Essa fibra é prensada e, a partir dela, começa o processo de fiação e retorção. O objetivo é fazer um novo fio, segundo Paulo Sensi, presidente da EuroFios, empresa parceira da Malwee no projeto. Os novelos são então enviados para a confecção.

Surge o tecido: Na fábrica da Malwee, uma máquina desenrola os fios de dezenas de rolos automaticamente, dando forma a um novo tecido.

Tom: Em uma produção de rotina, a malha é lavada e tingida. No caso do moletom feito a partir de fios de roupas usadas na fábrica catarinense, não há tingimento. O tecido fica na cor cinza.

A moda é circular: Brechós têm crescimento de até 250%

Confecção: No processo de confecção alguns tecidos permanecem na cor de tingimento e outros são estampados. Em seguida, vão para o corte e a confecção, onde recebem o acabamento e a forma final. Enfim as novas roupas estão prontas para seguirem para as lojas.

*As jornalistas viajaram a convite da Malwee