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Economia

Informalidade cresce e faz tecnologia do século XXI conviver com condições de trabalho do século XIX

Número de pessoas que trabalham em apps de mobilidade e entrega quintuplica na América Latina. Brasil precisa de políticas públicas para reverter precarização
Na pandemia, muitos brasileiros perderam emprego e buscaram oportunidade em aplicativos de mobilidade e de entrega Foto: Hannah Mckay / Reuters/4-12-2018
Na pandemia, muitos brasileiros perderam emprego e buscaram oportunidade em aplicativos de mobilidade e de entrega Foto: Hannah Mckay / Reuters/4-12-2018

RIO E SÃO PAULO - A evolução tecnológica deu impulso à geração de riquezas no planeta, ao mesmo tempo em que provocou uma revolução no mercado de trabalho. A pandemia de Covid-19 acelerou em décadas esse processo, gerando um verdadeiro tsunami no mundo do emprego, em todos os níveis de qualificação. No Brasil, isso se soma a um cenário de precarização, em que só o trabalho informal cresce.

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— Há um dilema: estamos trabalhando com tecnologia do século XXI, mas em condições de trabalho que são similares às do século XIX — afirmou ao GLOBO Vinícius Pinheiro, diretor regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para América Latina e Caribe.

O fenômeno é global. Mas na América Latina, onde o número de desempregados ou alijados da atividade econômica atingiu 55 milhões, o impacto pode ser mais cruel. A quantidade de pessoas atuando em plataformas como Uber, Rappi ou iFood na região quintuplicou no ano passado.

Essas pessoas enfrentam maior risco de exposição ao novo coronavírus, jornadas extenuantes, falta de seguridade social e baixo rendimento e ausência de parâmetros e direitos.

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— É possível comparar essas condições com a forma como se trabalhava na mineração do século XIX, quando não havia a limitação de horas de trabalho, você recebia uma miséria e ainda estava sujeito a ser contaminado por todos os agentes nocivos da mineração — disse Pinheiro.

Com pandemia, pedidos de 'delivery' cresceram e fizeram número de entregadores de apps aumentar Foto: Márcia Foletto / .
Com pandemia, pedidos de 'delivery' cresceram e fizeram número de entregadores de apps aumentar Foto: Márcia Foletto / .

Esta é a realidade de Guilherme Serra, de 29 anos, que perdeu o emprego no início da pandemia. Ele viu em um aplicativo para motoristas uma oportunidade. Mas a rotina não é fácil: seu expediente costuma começar às 5h e só termina por volta das 21h. Serra ainda tem de lidar com as dificuldades de uma relação de trabalho diferente:

— A gente não tem um telefone de contato direto, por exemplo. É só para quem tem uma nota e uma taxa de aceitação muito alta.

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Troca de emprego por tarefas

Para Jerry Davis, professor de Economia da Universidade de Michigan e pesquisador na Universidade de Stanford, ambas nos Estados Unidos, já se pode pensar em um futuro no qual todo trabalhador será uma microempresa.

Isso representa a reversão de uma tendência histórica que apontava para mais direitos, maiores salários e menor carga horária à medida que os países enriqueciam. Agora, busca-se o menor custo possível, onde quer que ele esteja, gerando um fenômeno de precarização global.

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— A Covid está sendo um desastre para o trabalho. Para empregos de colarinho branco, o “novo normal” do trabalho remoto gera concorrentes potenciais no mercado de trabalho global. Para o trabalho que deve ser feito pessoalmente, as plataformas substituem “empregos” por “tarefas” — disse Davis.

Rappi prevê dobrar de tamanho no país Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Rappi prevê dobrar de tamanho no país Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Pinheiro, da OIT, observa ainda que, com o home office, há o risco de as pessoas trabalharem mais tempo do que seria o ideal, em espaço físico inadequado, sem separar a vida pessoal e profissional:

— Há uma outra pandemia, uma pandemia mental e emocional. A falta de socialização de quem vive sozinho, a dificuldade em separar o trabalho do ambiente familiar e as jornadas exaustivas estão gerando um estresse pós-traumático que será pago no futuro.

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O governo precisa adotar políticas públicas para o trabalho, tanto de valorização do salário mínimo como de qualificação profissional, afirma Aguinaldo Maciente, pesquisador do Ipea. Ele ressalta que, por mais que algumas empresas ou setores se esforcem, não conseguem substituir o peso do governo:

— Além disso, é preciso criar proteção mínima para estes trabalhadores, evitar práticas degradantes. Políticas de trabalho são fundamentais para que a recuperação da economia seja mais forte e inclusiva, e não desigual — disse Maciente, ressaltando que suas opiniões não refletem a do instituto.

Sem investir em educação

Tanto Pinheiro como Davis defendem normas para minimizar os impactos negativos dessa revolução no mercado de trabalho. Um exemplo é a decisão do Reino Unido que reconheceu direitos trabalhistas de um grupo de motoristas que acionou o Uber na Justiça. Nos EUA, discute-se o aumento do salário mínimo.

Rodrigo Carelli, professor da UFRJ e procurador do Trabalho, lembra que, no passado, o Brasil perdeu espaço para a Coreia do Sul, e agora vê o processo se repetir com a China. Em ambos os casos, não por causa de salários, mas pela falta de um plano estratégico com qualificação e inovação.

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— A mão de obra chinesa já é mais cara que no Brasil, o mesmo ocorre na Argentina. A Fábrica da Ford não saiu do Brasil somente devido ao nosso custo trabalhista. Não é barateando a mão de obra que você fará uma grande nação. Aqui não temos investimento nem em educação nem em tecnologia — disse.

Clemente Ganz, economista e assessor do Fórum das Centrais Sindicais, alerta que as mudanças no trabalho demandam uma visão global:

— O impacto disso é gigantesco.

* Colaborou Bernardo Yoneshigue, estagiário, sob a supervisão de Claudia dos Santos