Economia Investimentos Mercado financeiro

Como a Evergrande, gigante imobiliária que tem de carro elétrico a time de futebol, virou uma dor de cabeça para a China?

Ações da incorporadora caíram mais de 10% com temor de calote em semana decisiva. Analistas temem que não haja resgate do governo
Homem passa em frente a condomínio desenvolvido pela chinesa Evergrande, em Guangzhou, no sul da China: empresa deve dar calote em investidores, fornecedores e clientes Foto: Noel Celis / AFP
Homem passa em frente a condomínio desenvolvido pela chinesa Evergrande, em Guangzhou, no sul da China: empresa deve dar calote em investidores, fornecedores e clientes Foto: Noel Celis / AFP

NOVA YORK -  Em meio ao temor de um calote, as ações da gigante do setor imobiliário chinesa Evergrande chegaram a cair 19% e fecharam em queda de 10% nesta segunda-feira em Hong Kong, derrubando a Bolsa local e levando turbulências aos mercados globais.

Com mais de US$ 300 bilhões em dívidas, a Evergrande é a segunda maior incoroporadora imobiliária da China e o temor é de que um colapso na empresa afete o setor financeiro chinês e também a indústria da construção civil no país.

Como a crise vai afetar a Bolsa? Gestores reduzem em até 20% projeções para Ibovespa

Isso poderia causar um efeito cascata afetando não só a China, mas todo o mercado financeiro e de crédito mundial. Por essa razão, as Bolsas em vários países, inclusive no Brasil, despencaram hoje.

Mas, como a Evergrande se tornou tão grande e por que entrou em crise? Entenda, abaixo, como a empresa virou uma dor de cabeça para Pequim:

A chinesa Evergrande não vai honrar dívidas com investidores, empregados e fornecedores. Na foto, mulheres se reúnem em frente à sede da empresa em busca de informações Foto: NOEL CELIS / AFP
A chinesa Evergrande não vai honrar dívidas com investidores, empregados e fornecedores. Na foto, mulheres se reúnem em frente à sede da empresa em busca de informações Foto: NOEL CELIS / AFP

1. O que está em jogo esta semana?

A Evergrande é a incorporadora mais endividada do mundo e, na semana passada, sinalizou a seus credores que talvez não conseguisse honrar seus débitos.

Os próximos dias serão decisivos. A empresa tem um pagamento de US$ 83,5 milhões em juros de dívida a honrar na quinta-feira. Nesta segunda, um débito menor, cujo valor não foi informado, também venceria, mas com prazo de carência até terça-feira. E, segundo fontes da Bloomberg, autoridades chinesas já alertaram aos credores que não devem esperar este pagamento.

No Brasil: Com alta da Selic, bancos sobem juros do financiamento imobiliário. Veja as taxas

O problema é que o timing não poderia ser pior: comemora-se um feriado nacional nestas segunda e terça-feira, o Festival da Lua, e os mercados estarão fechados na China continental, porém abertos em Hong Kong. Na quarta-feira, os mercados reabrem na China, mas fecham em Hong Kong. Investidores tentam assim se posicionar para não serem pegos de surpresa após os feriados.

2. Vender primeiro, perguntar depois

Ao todo, a empresa tem US$ 669 milhões em juros a pagar até o fim do ano, segundo dados compilados pela Bloomberg. A agência de classificação de risco Fitch já rebaixou todos os vencimentos da empresa para este mês como "junk", ou seja, com risco provável de calote.

Vista aérea do estádio de futebol Guangzhou Evergrande, apontado como o maior do mundo, que está sendo construído na província de Guangdong, no sul da China. Foto: STR / AFP
Vista aérea do estádio de futebol Guangzhou Evergrande, apontado como o maior do mundo, que está sendo construído na província de Guangdong, no sul da China. Foto: STR / AFP

Alguns desses papéis estão sendo negociados no mercado secundário por apenas 30% de seu valor de face - num forte sinal de que os investidores não esperam reaver seu dinheiro.

Diante da incerteza sobre como Pequim vai atuar para lidar com a crise, muitos investidores partiram para a estratégia “vender primeiro e perguntar depois”.

Emprego: Imóveis e saneamento impulsionam geração de vagas na construção civil, que ultrapassam 200 mil no ano

O presidente Xi Jinping terá que atuar num equilíbrio difícil entre reduzir o elevado nível de endividamento das incorporadoras chinesas e, ao mesmo tempo, garantir sua estratégia de oferecer moradia a preço acessível para os chineses. E fazer tudo isso sem provocar um grande estrago no mercado financeiro chinês.

- É o que os chineses iriam descrever como tentar escapar de um tigre – resume Justin Tang, chefe de pesquisas sobre a Ásia no United First Partners.

3. Por que a Evergrande é tão importante?

A incorporadora já construiu mais de 1.300 projetos em 280 cidades chinesas. É a segunda maior do setor na China, com receita anual de US$ 73,6 bilhões.

Com sede na cidade de Shenzhen, no sul da China, a empresa foi fundada por Hui Ka Yan, até hoje seu maior acionista e presidente, em 1996, em Guangzhou, e cresceu baseada em empréstimos volumosos.

Alipay: China quer separar app do conglomerado de Jack Ma, em mais uma investida contra 'big techs' no país, diz FT

Hoje é um conglomerado, com atuação vai bem além do setor imobiliário, com negócios tão diversificados como carros elétricos (Evergrande New Energy Auto), internet e mídia (HengTen Networks), parques temáticos (Evergrande Fairyland) e uma empresa de comida e água mineral (Evergrande Spring).

Em 2010,  comprou um time de futebol, o Guangzhou Evergrande, que construiu o que se acredita ser a maior escola de futebol do mundo, a um custo de US$ 185 milhões para o conglomerado.

Complexo cultural na cidade de Suzhou, na China: obras foram paralisadas com temor de calote da gigante do setor imobiliário Evergrande Foto: JESSICA YANG / AFP
Complexo cultural na cidade de Suzhou, na China: obras foram paralisadas com temor de calote da gigante do setor imobiliário Evergrande Foto: JESSICA YANG / AFP

Atualmente,  participa da construção do maior estádio de futebol do mundo, que espera que esteja concluída no próximo anos. O estádio de US$ 1,7 bilhão terá o formato de uma flor de lótus gigante e terá capacidade para 100 mil pessoas.

Um colapso da incorporadora, além de afetar o mercado financeiro e seus negócios, deixaria vários mutuários da casa própria na mão.

4. Hui é bem relacionado no governo?

Aparentemente sim. Nas celebrações dos 100 anos do Partido Comunista, quando o presidente Xi Jinping fez um discurso proclamando o crescimento inexorável do país, Hui integrava sua comitiva na Praça da Paz Celestial.

De origem humilde, filho de um lenhador, Hui é membro do Partido Comunista há 35 anos. E investe em setores considerados estratégicos por Pequim, como carros elétricos e medicina tradicional chinesa.

No alvo: China decide intervir no setor de educação privada

O empresário é também um proeminente filantropo. E seu investimento num time de futebol mostra que ele compartilha com Xi a paixão pelo esporte.

5. Como o grupo tenta seguir em frente?

Em 14 de setembro, a Evergrande anunciou que havia contratado consultores financeiros para ajudar a avaliar a situação e buscar todas as soluções viáveis o miais rápido possível. No entanto, ainda não conseguiu encontrar compradores para peças de seus veículos elétricos e negócios de serviços imobiliários, como não fez progressos em busca de investidores.

Policiais observam trabalhadores que protestam na frente da Evergrande Foto: NOEL CELIS / AFP
Policiais observam trabalhadores que protestam na frente da Evergrande Foto: NOEL CELIS / AFP

A empresa também está tentando vender sua torre de escritórios em Hong Kong, que comprou por cerca de US$ 1,6 bilhão em 2015, mas ainda não obteve sucesso neste sentido.

6. Como os investidores estão reagindo?

Os problemas de Evergrande espalharam-se pelas ruas na semana passada, quando os protestos irromperam em sua sede em Shenzhen se espalharam por cidades em toda a China.

Inovação: Apple lança hoje nova versão de seu sistema operacional iOS 15. Veja o que muda no iPhone

Já os acionistas estão cautelosos há meses: as ações caíram mais de 80% de seu valor este ano. Nesta segunda-feira, os papeis da Evergvrande chegaram a cair 19% e fecharam em queda de 10% em Hong Kong.

No início deste mês, as agências de classificação de  risco Fitch e a Moody's rebaixaram as notas de crédito da Evergrande, citando seus problemas de liquidez.

7. A Evergrande pode receber um socorro estatal?

A resposta do governo chinês até agora tem se limitado em grande parte à atuação do Banco Popular da China, que injetou 90 bilhões líquidos de yuans no sistema bancário na sexta-feira. E outros 100 bilhões de yuans no sábado.

Foto aéreade um complexo de apartamentos da Evergrande em Huaian, na província chinesa de Jiangsu Foto: STR / AFP
Foto aéreade um complexo de apartamentos da Evergrande em Huaian, na província chinesa de Jiangsu Foto: STR / AFP

O governo central e a província de Guangdong poderiam forçar uma reestruturação da empresa. Segundo interlocutores locais, Pequim teria instruído as autoridades de Guangdong a criar um plano de renegociação de dívidas para a Evergrande, o que incluiria uma ação coordenada com potenciais compradores de ativos da empresa.

Mas há dúvidas se o governo poderia fazer um socorro direto. Apoiar a Evergrande com recursos públicos poderia incentivar uma estratégia de negócios imprudente que já deixou em apuros contras gigantes como o grupo HNA e o Anbang.

Financiamento imobiliário: Veja qual linha de crédito é o melhor 'match' para você chegar à casa própria

Acabar com o “risco moral” - termo usado para definir as decisões de investidores que apostam pesado contando com um resgate estatal caso tudo dê errado - também poderia deixar o setor financeiro mais resiliente a longo prazo. Mas deixar uma gigante como a Evergrande ir à lona teria efeitos dramáticos no sistema financeiro chinês e afetaria centenas de mutuários da casa própria no país.

Seria um risco político e de descontentamento social que talvez o Partido Comunista não esteja disposto a correr.