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Economia Macroeconomia

Renda do trabalho encolhe R$ 18 bi em dois anos de pandemia

Houve abertura de vagas, mas com salários menores. Nunca o percentual de trabalhadores que ganham apenas um mínimo foi tão alto
Sem reajuste real do salário mínimo, o rendimento ainda deve continuar em queda: 4% na média do ano Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Sem reajuste real do salário mínimo, o rendimento ainda deve continuar em queda: 4% na média do ano Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

RIO - A crise provocada pela pandemia fez um estrago no mercado de trabalho, a ponto de a soma de todos os salários dos 95 milhões de ocupados no país — o maior contingente desde o início da série histórica da pesquisa do IBGE — representar menos de um terço do Produto Interno Bruto (PIB), perdendo espaço na economia para outros tipos de renda como lucros e juros.

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De acordo com cruzamento feito pela Corretora Tullet Prebom Brasil, a fatia de rendimentos do trabalho correspondia a 35,4% do PIB em fevereiro de 2020, antes da pandemia, caindo para 30,2% em abril de 2021, auge dos casos de Covid-19 no país.

Nem mesmo a inclusão dos salários de mais 12 milhões de ocupados à massa de rendimentos desde o segundo trimestre de 2020 fez a principal fonte de renda das famílias voltar aos níveis de antes da pandemia.

A reação no mercado de trabalho, com a queda da taxa de desemprego do pico de 14,8% em abril de 2021 para 11,2% , fez a participação dos salários subir apenas para 30,9% em janeiro deste ano.

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Essa queda no rendimento do trabalho funciona como um freio na economia, com menos recursos circulando para consumo e poupança. A massa de salários mensal caiu R$ 18 bilhões em relação ao início da pandemia, descontando a inflação. Eram R$ 250,5 bilhões em fevereiro de 2020, caindo para R$ 232,6 bilhões em janeiro deste ano.

A inflação de 10,54% nos últimos 12 meses , medida pelo IPCA, a recuperação do emprego pela informalidade e em setores que pagam menos e um universo de 12 milhões de desempregados que inibe o poder de barganha para buscar reposição da inflação para os que estão ocupados explicam parte desse tombo dos salários.

“A contrapartida são os lucros das empresas observados na economia”, mostra relatório da corretora.

Transferências governamentais

A Tendências Consultoria estima que a massa de renda total, incluindo aposentadorias, pensões e benefícios sociais, vai crescer 1,7% em 2022, ainda ficando abaixo de 2020.

A alta virá de transferências do governo, reajustadas pela inflação, e do Auxílio Brasil, de R$ 400, bem acima da média de R$ 190 do Bolsa Família e com mais 3 milhões de beneficiados, diz o economista da consultoria Lucas Assis:

— O rendimento ainda deve continuar em queda: 4% na média do ano. Vamos para o terceiro ano seguido sem reajuste real do salário mínimo. E não há perspectiva de que isso mude até 2026. A pandemia piorou o que já era ruim. Vamos continuar com a taxa de desemprego em dois dígitos por muitos anos. As condições de vida dos brasileiros estão bastante deterioradas.

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Foi o que viveu o supervisor de segurança Antônio Carlos Vergara, de 52 anos. Ele perdeu o emprego em março de 2020, quando o isolamento social foi imposto no país. Na época, ganhava cerca de R$ 3.500 mensais.

Mais de um ano depois, em novembro de 2021, ele finalmente conseguiu emprego com carteira assinada para exercer função semelhante a que tinha na outra empresa, mas o salário havia caído para R$ 1.400. Enquanto esperava uma vaga formal, vendeu quentinhas e trabalhou como segurança de rua.

— Trabalho na mesma função, mas com uma nova denominação. É uma forma de as empresas pagarem menos. Elas contratam os seguranças como porteiros ou controladores de acesso. No meu caso, porteiro. Eu ganho um salário de R$ 1.400 — contou.

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Formado em Letras, Vergara se ressente do salário tão baixo, mesmo tendo curso superior e experiência.

— É muito ruim receber tão pouco. Neste momento, estou estudando para concursos. Quero ser professor.

A assistente Flávia Santana ganha menos que em 2019 Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo
A assistente Flávia Santana ganha menos que em 2019 Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

35,3% ganham até 1 mínimo

O achatamento salarial está marcado nas estatísticas. De março de 2020, até dezembro do ano passado, mais 6,5 milhões de trabalhadores engrossaram o grupo que ganha até um salário mínimo.

O maior patamar de toda a série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, que começou em 2012. De acordo com o cruzamento feito pela LCA Consultores, atualmente, são 33,8 milhões com esses baixos salários, 35,3% dos ocupados. Em março de 2020, eram 29,2%.

— Nunca teve tanta gente empregada ganhando até um salário mínimo. Há uma precarização do mercado de trabalho, com informalidade e subemprego, com a massa de rendimento do trabalho caindo bastante, voltando aos níveis de quatro, cinco, seis anos atrás — afirma Bráulio Borges, economista da LCA Consultores e pesquisador da FGV.

A esperança é a inflação dar uma trégua, caindo dos atuais 10% ao ano para entre 6,5% e 7% no fim de 2022, diz Maria Andreia Parente, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

— Aumento real (acima da inflação) não existe no Brasil nesse momento. Quando a inflação perder força, esse rendimento deve aumentar, mas vai depender do dinamismo do mercado de trabalho. Estamos falando de 12 milhões de desempregados. Não há muito espaço para ganhos.

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A economista lembra que o alívio na inflação não vai ser o que se projetava no início do ano, quando as previsões do mercado mostravam que o IPCA poderia cair dos atuais 10% para 4,5%. Agora, elas subiram para 6,5% e 7%, com a alta das commodities intensificada pela guerra na Ucrânia.

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PIB estagnado não ajuda

A atividade também vai andar de lado, o que não ajuda o mercado de trabalho, lembra Borges. As previsões estão entre 0,5% e 1% de crescimento para 2022, insuficiente para absorver o aumento da população em idade de trabalhar (14 anos ou mais) de 1% ao ano, muito menos para incluir os milhões de desempregados:

— As perspectivas são muito desfavoráveis este ano. O PIB tem que crescer muito mais rápido para o desemprego cair com gosto. Com desemprego alto, o poder de barganha do trabalhador está muito enfraquecido. A massa de renda vai continuar com desempenho muito fraco neste ano.

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Pelos cálculos do economista da LCA, a taxa de desemprego de equilíbrio é de 9,5%. Hoje, está em 11,2% e não deve ceder tão cedo.

Sem trabalho no início da pandemia, a assistente administrativa Flávia Santana, 48 anos, conseguiu só agora voltar à faculdade, depois de trancar a matrícula por não conseguir pagar as mensalidades:

— Fiquei à deriva. Ninguém quis me contratar como CLT, então, durante esses últimos meses, o que foi aparecendo de oportunidade, eu fui ficando, mesmo sem carteira assinada e com remuneração baixa. O meu salário não alcançou o teto do que um assistente administrativo deve ganhar.

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No fim de 2020, quando finalmente conseguiu um emprego, Flávia viu sua renda mensal cair de R$ 1.700 em 2019 para R$ 1.500. Para quem mora com irmã, pai e filha, a perda foi expressiva:

— Cortei todos os tipos de lazer. Parei de sair com amigos e suspendi as idas ao shopping.

Adriana Beringuy, coordenadora de Trabalho e Rendimento do IBGE, diz que, em janeiro, foi a primeira vez desde abril de 2021 que os salários tiveram aumento nominal (sem descontar a inflação) de 1,7%. Longe de compensar a alta de preços.

— A massa de rendimentos tem ficado estável, embora haja contingente maior de trabalhadores. O crescimento não foi suficiente para compensar a retração do rendimento.