Economia

MP do Trabalho processa Uber, 99, Rappi e Lalamove e diz que há vínculo empregatício de motoristas

Procuradores, que investigam os aplicativos de transporte e entrega, apontam sinais de estímulo a longas jornadas. Pedem indenização e carteira assinada
Aplicativo Uber estão Foto: Gustavo Azeredo / Agência O Globo
Aplicativo Uber estão Foto: Gustavo Azeredo / Agência O Globo

SÃO PAULO — O Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo ajuizou quatro ações civis públicas nesta segunda-feira contra os aplicativos de transporte e entrega 99, Uber, Rappi e Lalamove por supostas fraudes trabalhistas cometidas pelas plataformas. Os processos são de âmbito nacional.

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O MPT pede à Justiça do Trabalho o reconhecimento de vínculo empregatício dos motoristas de aplicativo sob pena de multa de R$ 10 mil por trabalhador encontrado em condição irregular (sem o registro de trabalho formal).

Pede também que as quatro empresas paguem multa de 1% de seus faturamentos anuais para indenizar supostos danos morais coletivos cometidos contra os motoristas.

Os valores serão revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) em caso de condenação.

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Os procuradores solicitam ainda que as quatro empresas se abstenham de cadastrar novos motoristas sem reconhecer vínculos de trabalho formal.

Dados de viagens são apontados como provas

As quatro ações ainda precisam ser apreciadas pela Justiça do Trabalho, que deverá fazer audiências para ouvir as plataformas e colher provas. Se as empresas forem condenadas em primeira instâcia, ainda poderão recorrer.

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A procuradora Tatiana Simonetti, que participa das investigações, afirmou que há uma série de provas de que os aplicativos descumprem a legislação trabalhista.

Uma das principais provas usadas pelo MPT é a análise de dados de viagens realizadas por 10 mil motoristas da 99 entre julho de 2018 e julho de 2019.

Os dados foram inicialmente solicitados à 99 e ao Uber, mas as empresas se recusaram a fornecer os dados, que só foram obtidos por meio de decisão judicial.

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Também não fornecem dados exatos da quantidade de motoristas inscritos em cada plataforma nem qual é o faturamento de cada aplicativo.

Depoimentos apontam desestímulo ao descanso

Em uma planilha obtida após ação judicial mostra que só na Uber eram 773 mil motoristas cadastrados em 2017. Em depoimento dado em 2018 à Justiça, representantes da empresa falavam em 500 mil.

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— Os dados da própria empresa mostram que há permanência e continuidade dos trabalhadores (motoristas) nas atividades e muitos sem ter o dia de descanso semanal remunerado — diz Tatiana Simonetti.

De acordo com o Ministério Público, cerca de 40% dos motoristas descansavam em média menos de um dia por semana e aproximadamente 30% de um a dois dias por semana.

Também foram colhidos depoimentos de motoristas, além da realização de ações de fiscalizações e a análise dos termos de uso dos aplicativos.

MPT quer carteira, férias e folga remunerada

Se os pedidos do Ministério Público fossem atendidos, os aplicativos passariam a ter de contratar os motoristas como funcionários, com carteira assinada, o que lhes daria direito, por exemplo, a férias, 13º salário, jornada fixa de trabalho, descanso semanal remunerado.

Caso pedidos do MP forem atendidos, os aplicativos passariam a ter de contratar os motoristas como funcionários, com carteira assinada Foto: Arquivo
Caso pedidos do MP forem atendidos, os aplicativos passariam a ter de contratar os motoristas como funcionários, com carteira assinada Foto: Arquivo

Os processos se somam a outras oito ações civis públicas já propostas contra aplicativos de entrega que pedem reconhecimento de vínculo empregatício de entregadores e mais 12 movidas durante a pandemia solicitando medidas protetivas aos trabalhadores.

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Segundo o procurador do trabalho Rodrigo Castilho, que está à frente da coordenadoria do MPT que investiga os aplicativos e que ajuizou as ações, as investigações se iniciaram em 2016.

— Entendemos que o aplicativo vende um produto no mercado de consumo, que é o trabalho de uma pessoa (o motorista). A única diferença dos aplicativos para as demais empresas é que a forma de contratação se dá através de uma plataforma digital. A regra no Brasil é a relação de emprego quando se utiliza do trabalho de um ser humano — afirma Castilho.

Investigação recebeu mais de 600 denúncias

O MPT diz ter recebido mais de 600 denúncias relacionadas a aplicativos de mobilidade e entregas e que muitos procedimentos ainda estão em fase de investigação.

No total, 625 procedimentos já foram instaurados contra 14 aplicativos. A Uber lidera entre as mais demandadas pelo MPT, e responde a 230 procedimentos, seguida por iFood (94), Rappi (93), 99 (79), Loggi (50) e Cabify (24).

Segundo Castilho, apesar de afirmarem ser apenas intermediadoras entre motoristas e os usuários finais, os aplicativos em suas patentes se descrevem como serviços de transporte e, por isso, deveriam registrar os motoristas.

O que dizem os aplicativos

Procurado, o Rappi não quis comentar o tema. Em nota, a Uber afirma que não teve acesso à ação protocolada, embora o acesso esteja público no site do MPT, e que não recebeu notificação da Justiça antes de ser procurada pela imprensa.

"Assim que a Uber for notificada da  instauração do processo judicial, apresentará todos os elementos necessários para demonstrar que as alegações e pedidos do Ministério Público do Trabalho são baseados em entendimento equivocado sobre o modelo de funcionamento da empresa e da atividade dos motoristas parceiros", diz o documento.

Procuradores apontam sinais de estímulo a longas jornadas por aplicativos de transporte e entregas. Foto: Arquivo
Procuradores apontam sinais de estímulo a longas jornadas por aplicativos de transporte e entregas. Foto: Arquivo

A empresa afirma que os motoristas cadastrados não são empregados e não prestam serviço à plataforma, mas que são profissionais independentes "que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo".

"Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima", prossegue a nota da Uber.

A Uber diz que "diversas instâncias da Justiça do Trabalho vêm construindo sólida jurisprudência confirmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros" e cita que, do total de ações contra a Uber finalizadas até 2020, aproximadamente 10% tiveram acordos, o que segundo a empresa representa menos da metade da média da Justiça do Trabalho no ano passado.

O GLOBO procurou também a 99, que não comentou a ação e disse que se manifestaria por meio de nota da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec).

Sem citar diretamente a ação civil pública à qual a 99 responde, a associação elenca duas pesquisas para afirmar que "a grande maioria desses profissionais têm repetido que não deseja ter vínculo com uma plataforma".

O texto da entidade ainda diz que os motoristas têm "flexibilidade e autonomia" para decidir sobre suas jornadas e viagens e salienta decisões judiciais proferidas favoráveis aos aplicativos em instâncias superiores, como o Tribunal Superior do Trabalho e o Superior Tribunal de Justiça.

A reportagem não conseguiu localizar representantes da Lalamove.