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Economia Energia

Não é só falta de chuva: entenda em oito pontos como o Brasil está, de novo, à beira de um racionamento

Uma conjunção de problemas estruturais e um cenário adverso podem levar o país a uma crise como a que derrubou a economia há 20 anos
 A usina Hidreletrica de Marimbondo esta operando abaixo da capacidade por causa do período da estiagem Foto: Ferdinando Ramos / Agência O Globo
A usina Hidreletrica de Marimbondo esta operando abaixo da capacidade por causa do período da estiagem Foto: Ferdinando Ramos / Agência O Globo

RIO - A falta de chuvas não é a única responsável pela crise energética que traz o risco de um novo racionamento no país, exatamente 20 anos após a crise de 2001, quando uma redução forçada no consumo de energia derrubou a economia brasileira.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO citam uma conjunção de problemas estruturais e uma conjuntura adversa para explicar como chegamos até aqui.

Veja, abaixo, os oito principais fatos que deixaram o Brasil, de novo, à beira de um racionamento de energia.

Atraso nas bandeiras tarifárias

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Na avaliação dos especialistas, o governo deveria ter antecipado o início da bandeira vermelha nas contas de luz no ano passado. Mas, diante do cenário ainda adverso da pandemia, a bandeira vermelha, que impõe um custo adicional aos consumidores na conta de luz, foi aplicada em dezembro do ano passado, mas só vigorou por um mês. De janeiro a abril foi adotada a bandeira amarela.

Se a sobretaxa tivesse sido acionada antes, levando a uma redução no consumo de energia, isso poderia ter ajudado a manter os níveis dos reservatórios das hidrelétricas, já que o  volume de chuvas durante o último período úmido, entre novembro de 2020 e abril deste ano, foi o menor em 91 anos.

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O especialista Roberto Brandão, do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da UFRJ, lembra que o país começou o período seco já com o nível baixo dos reservatórios. Para ele, o governo poderia ter acionado mais as usinas térmicas e poupado as hidrelétricas.  Isso teria sinalizado aos consumidores que a situação hídrica estava em situação crítica.

- Não foi só um problema do ano passado. O volume de chuvas está abaixo da média histórica nos últimos nove anos - lembra Brandão.

Juliana Hornink, coordenadora de Inteligência de Mercado da Safira, lembra que desde 2012 o Brasil enfrenta redução no volume dos reservatórios, especialmente os do Sudeste, onde se concentra mais da metade do consumo de energia do país:

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- Em 2012, os reservatórios estavam com 60% de capacidade. Mas desde 2017 o volume das usinas do Sudeste está na casa dos 30%.  Comparando com 2001, na época do racionamento, os reservatórios do Sudeste estavam com 29%; e, no fim de maio deste ano, estavam na casa dos 32%. Não há como escapar do problema da falta de chuvas.

Efeito das mudanças climáticas nas previsões

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Um dos pontos citados pelos especialistas é a metodologia usada para prever as chuvas. Segundo Lavinia Hollanda, diretora executiva da Escopo Energia, a previsão hidrológica do país não estaria levando em conta os efeitos das mudanças climáticas de forma correta.

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Para ela, há indícios claros de que o aquecimento global vem reduzindo o volume de chuvas. Associações do setor dizem que os modelos usados no país usam previsões otimistas.

- Os efeitos climáticos estão sendo contemplados nas previsões de uma forma correta? - questiona Lavinia.

Falta de flexibilidade nas tarifas

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Atrasos na implantação de projetos que visam a modernizar o sistema tarifário também complicam o quadro. Entre eles, a iniciativa de facilitar o ingresso, no mercado livre, no qual o consumidor pode escolher de quem comprar a energia, de mais tipos de usuários, e não apenas as empresas que são grandes demandantes de eletricidade.

Outro projeto que não deslanchou, cita Lavinia, foi o da tarifa branca, que permite ao consumidor optar por pagar menos se consumir fora dos horários de pico do sistema – com a contrapartida de arcar com um custo mais alto se seus gastos se concentrarem no horário de maior demanda.

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- Acredito que parte da solução desse problema passa pelo lado da demanda, mas tudo isso requer planejamento. O consumidor deveria escolher o pacote de energia como escolhe o de celular. Programas como o da tarifa branca poderiam ser mais bem utilizados no Brasil. É preciso substituir os medidores nas casas dos clientes. As concessionárias podem ter redução de consumo e por isso é necessário um planejamento de equilíbrio econômico e financeiro. É preciso estímulos para que todos participem.

Juliana Hornink, da Safira, considera que a possibilidade de deslocar o consumo para fora dos horários de pico também é uma medida importante para ajudar. Se fosse já usado, poderia ter aliviado a atual crise.

- Desta forma, é possível ajustar o consumo com a geração de fonte eólica, por exemplo, que acabam gerando mais de madrugada - diz Juliana.

Diversificação da matriz

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Especialistas acreditam que faltou melhor planejamento dos governos desde 2001 com uma maior participação de fontes térmicas e renováveis. Eduardo Muniz, analista da MOS Capital, cita a necessidade de um maior número de usinas térmicas a gás no país.

Juliana Hornink, da Safira, destaca que, nos últimos cinco anos, houve incremento no Brasil de 36,5 mil MW da capacidade instalada, sendo 88% de fontes renováveis. Desse total, eólica e solar representaram 35% dessa expansão, atrás apenas das usinas hidrelétricas sem reservatórios, com 45%.

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- Essa diversificação de fontes é positiva e traz robustez ao sistema, mas essa expansão poderia ter sido mais regionalizada, com usinas mais próximas dos centros de cargas, para mitigar o atendimento da carga e também os custos e investimentos com linhas de transmissão. Este cenário traria menos pressão para o momento.

Carlos Mariz, presidente da Associação Brasileira de Energia Nuclear (Aben), lembra, por outro lado, que se tivessem sido construídas as usinas nucleares previstas nos governos anteriores nas últimas décadas, o sistema elétrico poderia ter uma maior segurança. Apesar de as usinas nucleares passarem por contestações no mundo inteiro após o acidente em Fukushima, no Japão, Mariz explica que o custo da energia é menor em relação a outras fontes.

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- A energia nuclear traz menores custos e maior confiabilidade ao sistema, já que o preço das térmicas são elevados. A energia gerada em Angra 1 e 2 tem custo de cerca de R$ 250 por megawatt/hora, bem menor que os R$ 600 médios das térmicas. São decisões de longo prazo - diz Muniz.

Usinas a fio d'água

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A construção de usinas hidrelétricas sem reservatórios, chamadas também de fio d'água, é apontado também como agravante que reduz o aumento na capacidade de geração justamente nos períodos em que há poucas chuvas.

Especialistas destacam que elas geram apenas quando há um grande volume de chuvas, o que não ocorre no período seco, já que não têm reservatórios. Em muitos casos, a opção por construir hidrelétricas a fio d’água foi para reduzir a área inundada e reduzir os potenciais impactos ambientais.

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Mas parte dos especialistas afirma que os últimos grandes projetos do Brasil, como as usinas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, no Pará, consumiram bilhões em investimento e geraram também impacto socioambiental, mas sem aumentar a capacidade de geração durante todo o ano.

- Continuamos investindo em energia hidrelétrica, mas sem reservatórios, o que reduz o volume de capacidade de geração - aponta Lavinia.

Baixa expansão da oferta

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As crises econômicas dos últimos anos, que reduziram o fôlego para investimentos e tiraram do radar novas expansões da oferta de energia, também foram citadas pelos especialistas. Eles lembram que a projeção em 2009 era de que o país tivesse 23% a mais de carga de energia do que a verificada hoje, com base nas previsões do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), afirma Juliana Hornink, da Safira.

Lavinia lembra ainda que, com a perspectiva de um maior crescimento da economia no segundo semestre, a preocupação agora é com o consumo nos momentos de pico:

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- Temos esse cenário hoje de preocupação com racionamento porque o temor é saber se vamos conseguir atender no momento de pico.

Juliana, da Safira, lembra que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) está revisitando agora bandeira tarifária com a intenção de criar uma bandeira nova, acima da bandeira vermelha 2, para dar uma melhor sinalização para a população da situação crítica.

- No ano passado tivemos redução do consumo, com a pandemia da Covid. Não fosse isso, essa situação já teria aparecido antes.

Regras para acionar usinas

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É importante pensar em mudanças nas regras que estabelecem os critérios para acionar as usinas, completa Lavinia, da Escopo Energia. Segundo ela, o modelo de despacho leva em conta apenas o custo da operação do sistema elétrico, sem considerar outras externalidades, como o uso múltiplo da água (navegação, pesca, irrigação, etc.).

Se esses fatores fossem considerados, explica ela, as usinas térmicas poderiam ser acionadas mais cedo:

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- O modelo não reflete a realidade do sistema. As restrições operativas são mais severas do que aquelas capturadas pelo modelo. Há muita discussão sobre os usos múltiplos da água, o que dificulta representar com precisão essa restrição nos modelos. É preciso melhorar a fiscalização e acompanhamento dos dados hidrológicos para garantir sua adequada representação no modelo.

Preços de referência defasados

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Os especialistas defendem ainda a mudança na forma como é calculado o PLD (Preço de Liquidação das Diferenças), que serve como base para a formação de preços de energia elétrica a curto prazo.  Hoje, o modelo leva em consideração previsões de vazões otimistas para as hidrelétricas, o que acaba atrasando a necessidade de entrada das usinas térmicas no sistema.

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Segundo os especialistas, se o modelo levasse em conta números mais pessimistas (e próximos da realidade), o mercado teria uma indicação mais clara e com mais antecedência de aumento nos custos de energia, já que passariam a prever o uso das térmicas mais cedo.

- O PLD não reflete a realidade do sistema, pois não sinaliza o preço real da geração. Esses modelos precisam antecipar a crise na oferta - diz Lavinia.