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Economia Negócios

‘Made in Brazil’: Empresas buscam fornecedor local para driblar alta do frete e falta de insumos

Nó das cadeias globais de produção provocado pela pandemia e agravado pela guerra na Ucrânia estimula movimento que começou nos eletroeletrônicos, mas já alcança setores como o têxtil
Fábrica da Electrolux no Brasil Foto: Isabel Braun/Divulgação / .
Fábrica da Electrolux no Brasil Foto: Isabel Braun/Divulgação / .

RIO — Logo no início da pandemia, em 2020, quando o fluxo global de mercadorias deu um nó, a fabricante brasileira de eletrodomésticos Mondial começou a elevar paulatinamente o seu índice de produção local. Cafeteiras, fritadeiras e sanduicheiras estão entre os produtos da empresa que foram nacionalizados para depender menos de itens estrangeiros e ampliar mercados na América do Sul.

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O movimento não é isolado. Faz parte de uma nova tendência de substituição de importações na indústria que começou pelas fabricantes de eletroeletrônicos e já alcança outros setores.

A guerra na Ucrânia reforçou ainda mais essa espécie de “desglobalização” nos planos estratégicos das empresas com a disparada dos preços do frete internacional e dos combustíveis. A ideia agora é ter fornecedores e consumidores o mais perto possível.

Exportação. Na Mondial, a meta é, com o aumento da produção no Brasil, ampliar as exportações, que hoje respondem por 3% do faturamento. O objetivo é chegar a 5% até o fim de 2023, diz Giovanni Cardoso, cofundador da companhia. Foto: Divulgação
Exportação. Na Mondial, a meta é, com o aumento da produção no Brasil, ampliar as exportações, que hoje respondem por 3% do faturamento. O objetivo é chegar a 5% até o fim de 2023, diz Giovanni Cardoso, cofundador da companhia. Foto: Divulgação

— A crise atual é um ingrediente acelerador. A China desindustrializou o mundo todo. Agora, estamos em um movimento contrário. Os países começaram a perceber os malefícios dessa dependência. Sabemos que os preços elevados (do frete) não vão se normalizar tão cedo. Por isso, trabalhamos com estoques acima da média — diz Giovanni Cardoso, cofundador da Mondial.

Crise é oportunidade

Para líderes empresariais como Cardoso, esta é uma oportunidade para a indústria brasileira recuperar terreno. Se a pandemia colocou em xeque o modelo de hiperglobalização no qual um produto se constitui de componentes oriundos de diferentes partes do mundo, a invasão da Ucrânia pela Rússia adiou ainda mais a reorganização das cadeias globais de produção que haviam alterado a indústria mundial nos últimos anos.

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As empresas então começam a mudar de estratégia. Além de buscar fornecedores locais, aumentam a produção para substituir produtos importados — que já sofrem com o dólar alto — nas prateleiras das lojas.

Na Mondial, a meta é que o índice de produtos feitos no Brasil suba dos atuais 65% para 72% até o fim de 2023 com o aumento da produção e a busca de fornecedores locais. Além da compra de novas máquinas, investe R$ 129 milhões na ampliação de fábricas no Amazonas e na Bahia.

A Multilaser também decidiu ampliar a produção de diversos itens em suas fábricas no Brasil neste ano. Em alguns casos, pretende até triplicar a produção nas unidades do Amazonas e de Minas Gerais neste ano. Os investimentos somam R$ 156 milhões, revela Alexandre Ostrowiecki, presidente da empresa.

Segundo ele, haverá aumento na produção de eletroeletrônicos como liquidificador, fritadeiras, aspirador de pó, além de equipamentos de ginástica e câmeras de segurança. Também está nos planos a produção de motos elétricas com a aquisição da fabricante Watts por R$ 10,5 milhões.

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— O preço do contêiner subiu nos últimos dois anos de US$ 1 mil para US$ 13 mil. Não há perspectiva de baixar o preço. Decidimos elevar a produção nacional. Não está compensando trazer para o Brasil — explica Ostrowiecki.

Demanda do varejo. A Brandili, fabricante de roupas infantis, investiu R$ 10 milhões para ampliar sua capacidade de produção. O objetivo é atender à maior demanda das redes varejistas por produtos nacionais com a dificuldade de importar. Foto: Divulgação / .
Demanda do varejo. A Brandili, fabricante de roupas infantis, investiu R$ 10 milhões para ampliar sua capacidade de produção. O objetivo é atender à maior demanda das redes varejistas por produtos nacionais com a dificuldade de importar. Foto: Divulgação / .

A Mallory, outra fabricante de eletrodomésticos, busca parceiros para substituir peças e matérias-primas importadas. Por isso, vem investindo em treinamento e tecnologia em empresas brasileiras para que elas consigam suprir itens estrangeiros. O grupo agora busca parcerias para fabricar motores, por exemplo.

— Hoje, montamos produtos no Brasil, fabricamos 100% e há casos em que importamos tudo. Internalizar algo exige planejamento, pois tem que investir e treinar. É uma cadeia que envolve vários parceiros. Agora, está mais barato produzir no Brasil do que trazer da China, cujo contêiner passou de US$ 5 mil para US$ 13 mil — exemplifica Amilcar Santos, supervisor de Engenharia da Mallory.

Parceria sustentável

A Electrolux também acelera o processo de nacionalização. Segundo Ramez Chamma, vice-presidente de Operações da empresa na América Latina, a estratégia é expandir a produção nacional nos próximos anos trazendo fornecedores para cada vez mais perto.

Cadeia local. A Michelin fez parceria com a ONG WWF para estimular a produção de borracha natural no Brasil. A união gerou mais de 7,5 toneladas de matéria-prima na Região Norte para abastecer a fábrica de pneus da empresa em Manaus.
Foto: Divulgação
Cadeia local. A Michelin fez parceria com a ONG WWF para estimular a produção de borracha natural no Brasil. A união gerou mais de 7,5 toneladas de matéria-prima na Região Norte para abastecer a fábrica de pneus da empresa em Manaus. Foto: Divulgação

— Nacionalizamos as principais e maiores categorias de produtos. Na fábrica de São Carlos (SP), passamos a produzir localmente a linha de fornos de embutir Electrolux e Continental e também trouxemos a produção de refrigeradores multidoor de alta capacidade, que antes eram importados. Isso garantiu mais agilidade na chegada dos produtos ao mercado e, consequentemente, maior competitividade. Para os próximos anos, já temos aprovados outros projetos para nacionalização — diz.

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Feliciano Almeida, presidente da Michelin América do Sul, firmou uma parceria com a WWF-Brasil para estimular produtores de borracha natural na Amazônia, matéria-prima dos pneus da empresa.

— Nossas equipes de logística, compras e indústria seguem trabalhando para buscar alternativas, desenvolvendo múltiplos fornecedores, buscando diminuir a cadeia logística e privilegiar o mercado local — conta o executivo.

Linha de produção da Mondial Foto: Divulgação
Linha de produção da Mondial Foto: Divulgação

No setor têxtil, a Brandili decidiu aumentar a produção local de roupas infantis ao perceber maior procura das lojas por itens nacionais dada a maior dificuldade de importação. Para isso, investiu R$ 10 milhões para ampliar a capacidade.

— Neste momento, a indústria nacional pode ser favorecida. A globalização está sendo revista. Por que depender tanto do mercado externo? O Brasil tem condições, mas é preciso que o governo estimule os investimentos — diz Jacques Douglas Filippi, diretor-geral da Brandili.

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Rafael Latore, gerente-geral da Antares Vision, que produz softwares de rastreamento e aumentou investimentos em 50% para ampliar a capacidade de produção no Brasil, acredita que é um movimento inevitável no atual contexto:

— Estamos hoje diante de uma globalização não globalizada. A crise dos semicondutores afetou muitas indústrias no mundo todo. As empresas tiveram que buscar soluções. Agora, há uma tendência em alguns setores de produzir o que antes era importado, mas não por uma questão de custo e sim de falta de componentes.

Pedras no caminho

Analistas concordam com as oportunidades que os empresários enxergam para a indústria nacional, que vem perdendo espaço, mas destacam obstáculos conjunturais, como custos e juros altos.

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André Duarte, professor e pesquisador do Insper, cita o México, que tem atraído indústrias para atender ao mercado dos EUA, como um exemplo que poderia ser seguido pelo Brasil para atender o mercado interno e países vizinhos:

— A busca é por cadeias mais curtas e mais ágeis e que também poluem menos. Diferentemente de outros momentos em que a industrialização contou com apoio do governo, agora é um movimento orgânico das empresas. Por outro lado, há movimentos contrários que não ajudam, como a alta taxa de juros, que tende a tornar a tomada de decisão de investimento mais demorada.

Lia Valls, pesquisadora associada ao Ibre/FGV, ressalta que essa busca por novos fornecedores pode criar um cenário de fragmentação, com consequente alta nos custos:

— Há o tempo de aprendizado e a economia de escala. E isso leva tempo. Podemos aproveitar esse momento para desenvolver nichos específicos, mas é preciso aumentar os investimentos em pesquisa e melhorar o “custo Brasil”.