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Por Cássia Almeida e Ivan Martinez-Vargas — Rio e São Paulo

Na origem da crise que levou a Americanas a entrar em recuperação judicial está a descoberta de um rombo de R$ 20 bilhões nos balanços de 2022 e de anos anteriores. O anúncio das “inconsistências contábeis” levou a uma queda de braço entre acionistas da varejista e bancos.

Com restrições de crédito, fornecedores apreensivos e queda vertiginosa no valor das ações, a saída foi pedir proteção à Justiça contra os credores. A empresa declarou um total de R$ 43 bilhões em dívidas e 16.300 credores.

Mas como um rombo financeiro desse tamanho, maior que o patrimônio líquido de R$ 14,7 bilhões da empresa, passou despercebido em uma companhia de capital aberto, fiscalizada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), integrante do Novo Mercado da Bolsa e do Índice de Sustentabilidade da B3 — que só admitem empresas com alto padrão de governança —, que tinha demonstrações financeiras auditadas por multinacionais e crédito bilionário em grandes bancos, além do aval de notas de crédito positivas de agências?

Com tantos sistemas de proteção ao investidor, como nenhum deles conseguiu identificar o problema antes que a empresa viesse a público?

Especialistas avaliam que erros contábeis podem ser difíceis de identificar, mas algumas das partes envolvidas tinham mais chance de se dar conta do que ocorria do que outras. Até para CVM, que tem a incumbência de regular e fiscalizar o mercado de capitais, ficaria difícil enxergar, principalmente se, ao fim da investigação, concluir-se que houve fraude.

—A CVM tem que garantir o bom funcionamento do mercado. Uma análise de conteúdo individual é muito mais difícil de acontecer antes de ser apurada uma falha. Quando acontece, a CVM vai punir —diz Gustavo Flausino Coelho, sócio do Bastilho Coelho Advogados.

Para o consultor Renato Chaves, professor da FGV Direito, o órgão fiscalizador deveria ser mais firme nas investigações e nas punições:

—Tudo acaba com a assinatura de um termo de compromisso. Para delitos graves, não deveria ser permitido.

Os bancos estão entre os credores da varejista. O Banco Safra, consultado, ressaltou que já havia provisionado metade de sua exposição à Americanas, de R$ 2,4 bilhões, no exercício de 2022 e que fez um aumento de capital de R$ 7,4 bilhões em novembro. Os bancos Itaú e Bradesco preferiram não comentar.

A responsabilidade das auditorias será cobrada, dizem os analistas, porque era delas a atribuição de se aprofundar nos números da empresa.

O fato de a Americanas integrar o Novo Mercado e seguir os padrões mais rígidos de governança não blindam o investidor de revezes como este, advertem Chavez e Coelho.

Ronaldo Vasconcellos, professor da Faculdade de Direito do Mackenzie e sócio do escritório VH Advogados, diz que é provável que os credores busquem a responsabilização dos acionistas de referência da Americanas— os bilionários Jorge Paulo Lemman, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira —, criadores da 3G e que detêm 30,13% do capital da varejista:

— É quase certo que haverá pedidos para que esses acionistas paguem pelos prejuízos, até na pessoa física — diz Vasconcellos.

Em nota, a CVM afirma que “constituiu uma força-tarefa” para apurar o caso e está usando convênios com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Diz ainda que mantém acordo de intercâmbio de informações com o Tribunal de Contas da União (TCU).

A B3 informou que pode prever regras de exclusão do Novo Mercado. Procuradas, Americanas, KPMG e PwC não responderam.

Papel da CVM

Órgão fiscalizador pode ser investigado por omissão pelo TCU

Ilustração caso Americanas — Foto: Editoria de Arte
Ilustração caso Americanas — Foto: Editoria de Arte

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem como missão fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de capitais no Brasil. Com a crise das Americanas, abriu sete processos para investigar os erros nas demonstrações financeiras da empresa, mas só depois que a própria veio a público informar um rombo de pelo menos R$ 20 bilhões.

O Ministério Público pediu que o Tribunal de Contas da União (TCU) investigue se houve omissão do órgão regulador. Para Renato Chaves, professor da FGV Direito, é difícil identificar falhas na fiscalização do mercado:

— A CVM cumpre seu papel. Pede explicações, dá dez dias para respostas e, daqui a um ano, vamos ver os envolvidos assinarem termo de compromisso — critica o consultor, referindo-se aos acordos firmados pela autarquia que amenizam punições.

Lá fora, opina Chaves, o órgão fiscalizador já teria acionado a Justiça para obter mandado de busca e apreensão na empresa, para evitar a destruição de provas de eventuais fraudes.

Para Gustavo Coelho, da FGV, é difícil a CVM perceber equívocos dessa natureza:

— O objetivo dela é criar um ambiente adequado no mercado, mas não é imune a falhas.

A CVM informou que “constituiu uma força-tarefa” para apurar o caso e que “está fazendo uso dos convênios e da cooperação que possui junto à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal”. Diz ainda que está em constante diálogo com a Advocacia-Geral da União e mantém acordo de troca de informações com o TCU.

Auditoria em xeque

Análise não detectou rombo, e empresas podem ser responsabilizadas

Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte
Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte

As inconsistências nos balanços da Americanas não se restringem ao ano de 2022. Mas PwC e KPMG, duas das consultorias mais respeitadas do mundo, fizeram auditorias e avalizaram as contas da varejista sem apontá-las. Escritórios de advocacia que preparam processos no exterior para reparação já citaram que pretendem incluir auditores e acionistas.

Especialistas dizem que houve falha nas auditorias. Segundo Renato Chaves, professor da FGV Direito, as consultorias têm obrigação de ir mais fundo nos números:

— Há fraudes difíceis de identificar, escondidas no meio de contratos de pequenos valores. Não entram na régua de avaliação de auditores. Mas, nesse caso, foi grande e ao longo do tempo.

O advogado Gustavo Flausino Coelho diz que, nesses momentos, a independência das consultorias é sempre questionada. É a teoria da captura, que discute a isenção de consultorias, pagas pelas auditadas, e suas limitações:

—Há poucas no mercado e predileção pelas de mais prestígio. Podem ser responsabilizadas.

Bruno Furiati, sócio da Sampaio Ferraz Advogados, diz que um problema é a quantidade de aferições feitas só com base em declarações da administração. As auditorias precisam analisar contratos como o de risco sacado (quando bancos antecipam recursos a fornecedores):

— No caso das Americanas, não pediram? Se pediram, não bateram com o balanço?

As consultorias não comentaram.

Aval dos bancos

Com pagamentos em dia e boa reputação, varejista tinha crédito

Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte
Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte

A enorme dívida de R$ 43 bilhões declarada pela Americanas à Justiça tem entre os credores muitos bancos, evidenciando que a rede não tinha problemas para obter crédito, mesmo junto a tradicionais instituições financeiras. Quem acompanha o caso se pergunta: como os bancos, tão ciosos na hora de conceder empréstimos, não viram os erros nos balanços?.

Analistas explicam que os bancos se fiaram nas demonstrações financeiras auditadas, no poderio econômico e nos bons números que a empresa exibia, diz Gustavo Coelho:

— São contas sólidas, aprovadas em assembleia, com margem baixa de lucro, mas muita penetração, faturamento bastante elevado com tendência de perenidade. As notas das agências de rating são outra chancela.

O consultor Renato Chaves lembra que os bancos estavam sendo pagos em dia.

André Pimentel, consultor da Performa Partners, afirma que a reputação dos sócios da 3G Capital foi outra chancela para as instituições.

Consultado, o Banco Safra ressaltou que já havia provisionado metade de sua exposição à Americanas, de R$ 2,4 bilhões, no exercício de 2022. O banco fez um aumento de capital de R$ 7,4 bilhões em novembro, o que reduz a proporção da exposição em seu patrimônio líquido. Um assessor de outro banco credor diz que ninguém sabia do problema contábil da empresa, que era listada no Novo Mercado e tinha balanços auditados sem apontamentos.

Selo na bolsa

Rede fazia parte do núcleo considerado com a melhor governança na b3

Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte
Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte

Um erro contábil de R$ 20 bilhões foi revelada numa companhia que faz parte de um grupo seleto da Bolsa de Valores, a B3. Até quinta-feira, a Americanas estava no Novo Mercado, que exige regras mais rígidas de governança: classe única da ações (ON), com direito a voto, conselho com membros independentes e alto nível de transparência. A varejista também integrava o Índice de Sustentabilidade, outro selo de boas práticas da B3. Após a recuperação judicial, foi retirada de todos os índices.

— O Novo Mercado aumenta a barra de cobrança, exige governança mais elevada, e a empresa se torna mais interessante para investir. Mas não necessariamente esses selos blindam essas ações — diz o advogado Gustavo Coelho.

O Novo Mercado traz mais segurança e conforto ao investidor, “mas não é uma garantia”, concorda Renato Chaves:

— Ele ainda precisa evoluir. A relação com o investidor da Americanas é muito ruim. O modelo de negócios merece ser questionado.

Na última terça, o CEO da B3, Gilson Finkelsztain, afirmou que evitar prejuízos ao investidor deve mobilizar todos os agentes do mercado. Disse que a B3 poderá avaliar a criação de regras de exclusão do Novo Mercado: “É um debate que sozinho não evita prejuízo ao investidor, porque funciona após o surgimento do problema. O mais relevante é buscarmos medidas mais eficientes de evitar que isso ocorra”.

'Rating’ atrasado

Agências de risco só cortaram nota de crédito após ação ter queda de 77%

Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte
Ilustração Americanas — Foto: Editoria de Arte

As principais agências de rating do mundo, que avaliam risco de crédito, só rebaixaram a nota da Americanas para C (risco elevado) e D ( risco de default, calote) depois que os papéis da companhia já tinham caído 77% na Bolsa. Até então, a varejista exibia nota B das agências.

Mais uma vez elas chegam depois, diz o advogado Gustavo Coelho. As agências não deram qualquer aviso anterior sobre a nota da varejista, que vinha contabilizando dívida financeira como despesa com fornecedores há anos, reduzindo no papel seu nível de endividamento.

As avaliadoras olham as demonstrações financeiras, o mercado, a expansão da empresa. Mas críticos ao modelo dizem que é preciso que o rating vire de fato uma referência da saúde financeira da companhia. A avaliação, segundo Coelho, passa mais por monitorar, a partir de fatos do mercado, as circunstâncias da economia para o setor e a empresa.

—Cria-se a obrigação de ter um rating, que pode não valer nada. Analisam com base nas demonstrações, não entram na companhia para verificar nada. Acreditam naquilo que tem aval dos auditores. Não há regulação específica — critica Renato Chaves.

Na crise global de 2008, as agências de classificação de risco foram criticadas e responsabilizadas por avalizar com nota máxima papéis sem lastro, que viraram pó em pouco tempo.

Procuradas, as agências não comentaram.

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