O alojamento onde 207 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão, em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, em 22 de fevereiro, funcionava há anos em meio a um bairro residencial pacato, com casas de madeira bem cuidadas e ruas de paralelepípedos, a cerca de dois quilômetros do Centro da cidade.
Nesta quinta-feira, uma semana depois da operação no local, que envolveu Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, havia cabeceiras e estrados de camas empilhados na calçada em frente ao imóvel onde estavam os trabalhadores. O local se encontra em processo de interdição, segundo a prefeitura.
Na quarta e na quinta-feira pela manhã, só havia movimento nas casas ao lado, que também servem de alojamento, mas não entraram na operação. Em comum, os imóveis têm as mesmas placas, com o aviso: “Atenção. Proibida a entrada com bebida alcoólica.”
Pedindo para não serem identificadas e sem dar entrevista, pessoas abordadas pela reportagem no local afirmam que os imóveis também pertencem à Fênix, investigada no caso. Era por meio dela que os trabalhadores, a maioria deles vindos da Bahia, prestavam serviços à vinícolas como Salton, Aurora e Garibaldi.
Vanius Corte, gerente regional do MTE, explicou que a denúncia falava daquele local específico, mas que, na medida do possível, vão verificar os outros alojamentos.
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Moradores dos arredores da Rua Fortunato João Rizzardo, no bairro Borgo, se dividem entre não falar sobre o caso e comentários receosos, pedindo para não serem identificados. Alguns contam que a rotina nas casas tinha barulho frequente e começava na madrugada, com vans para transporte e chamada de trabalhadores por nome, na rua.
Mais de uma pessoa conta que as reclamações por barulho feitas à Brigada Militar, a PM gaúcha, não costumavam ser atendidas. Segundo um morador, diziam “Tá, tá”, e desligavam o telefone.
Armas de choque
Corte confirma que só houve denúncias por barulho:
— Eles não tratavam aquilo como um problema de trabalho, e sim como um problema de perturbação. Nunca havia chegado a nós uma denúncia de trabalho. Só soubemos com a fuga dos trabalhadores.
Outro morador contou ao GLOBO ter visto pessoas passando com armas de choque e que parentes seus ouviram relatos sobre uma salinha onde os trabalhadores apanhavam.
Um comerciante da região diz achar curioso que “a mídia só mostra o lado dos nordestinos” e não fala das “confusões”. Muitos dizem ter visto consumo de bebidas alcoólicas e drogas entre os trabalhadores.
Outro afirma que nunca ouviu relatos sobre violações e não sabia o que acontecia até o caso se tornar público. E diz que os trabalhadores “são bem de respeito.”
'Ninguém gosta da gente'
Baiano, José Luiz Oliveira Jr., de 29 anos, que já morou nos alojamentos, diz que espera que a justiça seja feita, que quem errou pague por seus erros, e defende os empresários envolvidos na investigação:
— Nessa rua, só tem essa pensão com a galera da Bahia, então, qualquer vizinho que você for pegar relato, eles vão distorcer porque não aceitam a gente aqui — afirma. — São todos preconceituosos, ninguém gosta da gente, eles só aceitam porque são escassos de mão de obra.
Sobre as denúncias de agressões, ele e outro homem que ainda vive no local negam a existência de uma sala onde trabalhadores apanhavam, mas admite que houve uso de arma de choque. Ele afirma, porém, não poder afirmar na mão de quem estava, se de segurança ou “do pessoal da safra”:
— Toda ação tem uma reação, nunca apanhei aqui nem bati em ninguém. Nunca vi pessoas apanhando, vi pessoas brigarem entre si. Muita gente junto, vai acontecer.
O tom geral na cidade, porém, parece ser de pessoas apreensivas em falar qualquer coisa e tentando separar as vinícolas do caso. Estas, desde o início, afirmaram desconhecer o que ocorria e encerraram o contrato com a Fênix.
Três mulheres baianas, abordadas pela reportagem na rua, em um local distante do alojamento, recusaram-se a falar com a reportagem afirmando ter medo de alguém ficar sabendo. Os maridos de duas delas trabalham em vagas conseguidas por meio da empresa de Pedro Augusto Oliveira de Santana, que administrava a Fênix por procuração.
Aumento da imigração
Entre outros nordestinos que migraram para a serra gaúcha atrás de emprego, o caso repercutiu ao se verem alvo do discurso xenofóbico do vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel (sem partido), agora alvo de um processo de cassação.
Erica Garces Oliveira, de 29 anos, também da Bahia, chegou a Bento Gonçalves há cerca de três meses e conseguiu um emprego de carteira assinada em serviços gerais em um hotel. Negra, ela diz não ter sofrido preconceito, mas a mãe e a irmã, que estão há mais tempo na cidade, sim:
— Dizem que às vezes olham feio para elas.
Uma pernambucana, que não quis ser identificada por temer represálias no trabalho, conta que o marido, também pernambucano, deixou o emprego por não aguentar as falas dos colegas. Há seis anos na cidade, ela busca outra vaga porque diz que seu atual empregador nunca paga o valor prometido na contratação.
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Ainda assim, há uma onda mais forte de sotaques do nordeste e do Pará nas ruas da cidade nos últimos anos.
— A imigração aqui é histórica, são movimentos contínuos, de todas as partes do Brasil e até do exterior, o aumento é bem relativo à oferta de trabalho, que aqui na nossa região é abundante — diz o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Eduardo Virissimo.
Um motorista cearense elogia a cidade e os serviços públicos, mas brinca que, se “parar de pegar nordestinos para trazer argentinos, Bento Gonçalves quebraria.”
O MPT do Rio Grande do Sul informou ontem que a Fênix comprovou o pagamento das verbas rescisórias, mas não aceitou o termo de ajustamento de conduta porque não reconhece a situação de trabalho análogo à escravidão. (Colaborou Ana Flávia Pilar)