Economia
PUBLICIDADE

Por Ana Flávia Pilar — Rio

No dia 21 de fevereiro, três trabalhadores da Fênix Prestação de Serviços decidiram encaminhar um vídeo de denúncia no grupo da empresa. Nas imagens, eles apareciam encharcados e mostravam o que haviam recebido para o almoço. O menu era sempre o mesmo: arroz, feijão e frango com cheiro azedo.

Quando voltaram da colheita, cinco “capangas” do administrador da empresa já os aguardavam na porta do alojamento. Os funcionários foram agredidos com mordidas, choques, socos, cadeiradas nas costas e “gravatas”.

Em depoimentos ao Ministério do Trabalho, aos quais O GLOBO teve acesso, trabalhadores resgatados na semana passada no Rio Grande do Sul contam mais detalhes sobre o cotidiano nas dependências da Fênix. A empresa fornecia mão de obra terceirizada para vinícolas da região, como Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.

Os seis relatos confirmam que os funcionários chegaram em Bento Gonçalves, vindos da Bahia, e assinaram um contrato de prestação de serviços no valor de R$ 3 mil por 45 dias de trabalho, o período da safra de uvas. Estava acordado que a jornada diária seria de 15 horas. Nenhum deles foi pago.

Falta de equipamentos

Eles receberam apenas R$ 400 para gastar em um mercadinho que pertencia ao dono da empresa, onde eram vendidos itens básicos a preços muito mais acima do normal. Um pacote de biscoito água e sal, por exemplo, custava R$ 15.

Alojamento de empresa que mantinha empregados em condição análoga à escravidão, em Bento Gonçalves — Foto: Reprodução/Polícia Federal
Alojamento de empresa que mantinha empregados em condição análoga à escravidão, em Bento Gonçalves — Foto: Reprodução/Polícia Federal

Além disso, havia apenas quatro privadas para mais de 200 trabalhadores, que viviam amontados em beliches, separados em quartos pequenos sem manutenção ou limpeza.

Em depoimento à PRF, X., de 36 anos, conta que os trabalhadores tinham de usar sua própria roupa de cama e travesseiro. “Um deles não tinha travesseiro e improvisava com a mochila para dormir.” Os itens de higiene tinham de ser comprados no mercadinho do administrador da Fênix.

X. relata ainda que, na véspera de fugir, foi trancado no quarto por quatro capangas. “Fui espancado com spray de pimenta, gravata no pescoço, pancadas com cabo de vassoura e mordida no ombro esquerdo. Depois, dois colegas chegaram e também foram espancados.” Ele diz ainda que houve uma “ordem de matar os trabalhadores baianos.”

Y., de 23 anos, diz que a marmita — “arroz, feijão e um pedaço de frango, geralmente com cheiro desagradável e azedo” — não vinha com talheres. Quem não tivesse tinha de usar a tampa da marmita. A água também era por conta dos trabalhadores.

W., de 20 anos, diz que os capangas “davam choque com laser para acordar” alguns trabalhadores. Quanto aos equipamentos de proteção, ele recebeu apenas um par de luvas e um par de botas. “As luvas eram de pano. Rasgaram em dois dias e não foram trocadas. As botas rasgaram em uma semana e não foram trocadas. No contrato dizia que receberíamos óculos de sol e protetor solar, o que não aconteceu.”

Um deles relata ter desmaiado durante a colheita. Foi levado de carro a um hospital por um funcionário da empresa, mas na volta teve de caminhar quatro quilômetros. Outro trabalhador viu dois colegas se esfaquearem. No dia seguinte, ambos foram trabalhar normalmente.

“Presenciei também o espancamento de um colega pelos motoristas e por mais um segurança. Todos andavam armados o tempo todo”, conta Z., de 22 anos. Pouco depois, ele e um colega foram levados a uma sala e “agredidos com uma cadeira de ferro na cabeça e socos na cabeça e nos braços. Durante as agressões, fomos ameaçados de morte.”

Os alojamentos não tinham camas, limpeza, armários, instalações sanitárias adequadas nem locais adequados para refeições — Foto: Divulgação
Os alojamentos não tinham camas, limpeza, armários, instalações sanitárias adequadas nem locais adequados para refeições — Foto: Divulgação

Veio então a decisão de fugir. No dia 22 de fevereiro, eles pularam a janela do alojamento, a uma distância de dois metros até uma laje. Depois, se jogaram diante de outros cinco metros de altura até o chão. Como caíram em um jardim, não se machucaram.

Um dos homens no grupo tinha um celular escondido, que foi usado para pedir dinheiro às famílias e chamar um carro de aplicativo. Os trabalhadores foram de carro até um posto de gasolina em Garibaldi e se esconderam no banheiro.

Pouco depois, pegaram outro carro de aplicativo até a rodoviária, onde compraram passagens para Caxias do Sul. No caminho, eles contataram agentes em um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Vinícolas repudiam

Procuradas, as vinícolas foram unânimes em repudiar os fatos relatados. A Cooperativa Garibaldi e a Salton ressaltaram ter encerrado imediatamente seus contratos com a Fênix após a revelação de que esta mantinha trabalhadores em condições análogas à escravidão.

A Salton informou ainda que “está adotando medidas austeras para que os fatos sejam devidamente esclarecidos e que não se repitam” e que “intensificou a fiscalização de fornecedores e prestadores de serviço”.

A Aurora afirmou que se solidariza com as vítimas e ressaltou que nenhum dos fatos relatados aconteceu dentro de suas instalações. A empresa disse ainda que “se colocou à disposição das autoridades competentes e vem atuando em conjunto com o Ministério Público do Trabalho.”

A Garibaldi informou que está prestando solidariedade aos trabalhadores e seus familiares, e reiterou que “jamais aceitará tais conduções em suas relações de trabalho.”

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi procurada para saber se compra vinho canônico de alguma dessas vinícolas. A entidade afirmou em nota que, para a celebração da missa, devem ser buscados “vinhos de proveniência sobre a qual não existam dúvidas a respeito dos critérios éticos na sua produção.”

Webstories
Mais recente Próxima
Mais do Globo

Um dos envolvidos já havia sido preso e confessou ter entrado em uma briga com as vítimas

Chacina da sinuca: o que se sabe sobre briga após campeonato em Sergipe que terminou com seis mortos, um preso e dois foragidos

Num deles, Alexandre de Moraes é sugerido como sendo 'advogado do PCC'

Eleições SP: campanha digital de Nunes lança série de vídeos de ataques a Marçal

A decisão é da 4ª Câmara de Direito Privado do TJ do Rio

Vendedora ambulante será indenizada após ser abordada com violência no Metrô do Rio

Como francês Stephan Dunoyer de Segonzac deu pontapé inicial do esporte no país ao decolar dos pés do Cristo Redentor, em setembro de 1974

'Homem-pipa': O voo que inaugurou a asa-delta no Brasil, há 50 anos

Neurocirurgião Jacinto Lay sofreu queda em março do ano passado, quando pilotava sozinho uma aeronave de pequeno porte

Estado de saúde de médico que pilotava avião que caiu em Teresina é grave; piloto já tinha caído outra vez

BepiColombo, uma missão conjunta europeia e japonesa, concluiu seu último sobrevoo por Mercúrio, enviando uma prévia do planeta cheio de crateras que começará a orbitar em 2026

Novas imagens mostram a superfície de Mercúrio como nunca vista antes;  veja com detalhes nítidos

Supremo Tribunal Federal reservou três semanas para ouvir 85 testemunhas de defesa de cinco réus, sendo que algumas são as mesmas, como os delegados Giniton Lages e Daniel Rosa, que investigaram o caso

Caso Marielle: audiência da ação penal contra irmãos Brazão e Rivaldo Barbosa será retomada hoje pelo STF

A decisão do candidato da oposição de deixar a Venezuela por temer pela sua vida e pela da sua família ocorreu depois de ter sido processado pelo Ministério Público por cinco crimes relacionados com a sua função eleitoral

Saiba como foi a fuga de Edmundo González, candidato de oposição da Venezuela ameaçado por Nicolás Maduro

Cidade contabiliza 21 casos desde 2022; prefeitura destaca cuidados necessários

Mpox em Niterói: secretária de Saúde diz que doença está sob controle