Uma das propostas importantes para o aumento de receitas para o novo arcabouço fiscal, a tributação de empresas que contam com benefício fiscal concedido por estados via ICMS, não é tarefa a ser posta em prática no curto prazo, avaliam especialistas. Poderia resultar ainda em judicialização e afetar o caixa de grandes varejistas.
A medida está entre as três principais anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para ampliar a arrecadação e alcançar as metas fiscais previstas pelo novo arcabouço. E poderia render entre R$ 85 bilhões e R$ 90 bilhões, segundo cálculos da equipe econômica.
A proposta é que esses benefícios ficais sejam incluídos na base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) sempre que forem utilizados como custeio da empresa. O montante usado como investimento seguiria isento.
— Não é mudança tão imediata quanto o governo deseja. Há um rito legislativo para alterar a lei complementar que tornou esse benefício isento. Ainda que houvesse agilidade em aprovar, a tributação no IRPJ só se aplica no ano seguinte, enquanto na CSLL em um prazo de 90 dias a partir da publicação da nova regra — explica o advogado tributarista Eduardo Lustosa, sócio do escritório LLH.
A Lei Complementar 160, de 2017, definiu que todo incentivo via ICMS é visto como investimento e fica isento de tributação via IRPJ e CSLL. Antes disso, o entendimento era de que se esse benefício fosse usado pela empresa como investimento, ele estaria isento. Se entrasse como receita, deveria ser taxado. E esse debate voltou à mesa.
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— Em março, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) resolveu analisar o tema, após um questionamento da Receita Federal, de 2021, de que apenas benefício usado para fomento é isento. Essa avaliação pode levar anos, ou ser priorizada diante do anúncio do Haddad — destaca Bianca Xavier, advogada tributarista e professora da FGV Direito Rio.
O julgamento na corte está marcado para o dia 26.
‘Quem não paga precisa pagar’
Do lado do governo, a medida é importante para ampliar arrecadação.
— Vamos beneficiar alguns grupos econômicos que estão fazendo uso indevido da legislação ou vamos fazer a nossa reparação social? Quem vai escolher é a sociedade. Estamos convictos de que temos que acabar com isso para poder manter o eixo de reparação social com responsabilidade fiscal. Se não, a despesa vai crescer menos — afirma o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron.
Segundo ele, o governo ainda avalia se vai propor a mudança por medida provisória ou projeto de lei.
- Mudanças na economia: o que pensam os economistas sobre o novo arcabouço fiscal?
— Claro que depois tem a validação política da sociedade, e o Congresso representa a sociedade. Do ponto de vista técnico, estamos seguros. É uma distorção clara.
Ele negou aumento de carga tributária, e ressaltou que se trata de um ajuste da base fiscal.
— Quem não paga precisa pagar. Isso é uma questão de isonomia tributária. Quem não está pagando de forma ilegítima ou com distorções absurdas, a gente recupera a base fiscal. Esse é o plano de voo. A gente está enxergando quem não está pagando.
O economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega reconhece o esforço do governo, mas avalia poderá haver judicialização:
— Não é fácil mexer em incentivos fiscais. Pode levar à judicialização, chegando até ao Supremo (Tribunal Federal). Pode acontecer como na discussão sobre a exclusão ou não do ICMS da base de cálculo do PIS/Confins, que se arrasta há anos. Com isso, a receita esperada pelo governo pode não vir agora. Acho este é um pilar muito frágil do arcabouço fiscal e que, além disso, ainda depende da aprovação do Congresso.
O analista Lucas de Aragão, da consultoria política Arko Advice, afirma relatório, que a medida teria que ser enviada ao Congresso como um projeto de lei complementar. Para ser aprovado, precisaria ter maioria em ambas as casas. E frisa que, como o varejo é um grande empregador, isso dificultaria a aceitação da medida entre os parlamentares.
Para os especialistas, no entanto, mobilizar o Congresso para alterar a regra vigente pode consumir energia política que poderia ser direcionada a acelerar a reforma tributária. Ao mesmo tempo, a medida é vista com uma via paralela à da reforma, por abrir caminho para a aprovação do arcabouço fiscal com mais arrecadação.
— A medida sugere que a reforma tributária pode demorar, dá sinais de que está sendo feita uma política paralela. Por outro lado, a reforma tributária não é imediata. E o arcabouço fiscal tem de sair. Então, o ministro tem de mostrar que há condições para isso — pontua Bianca.
Já o advogado Gustavo Brigagão pondera que esse debate vem na esteira de uma reforma que, segundo as principais propostas em debate, irá acabar com o benefício fiscal.
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— Essa discussão estão sendo feita num momento em que as bases de incidência de tributos de consumo e renda estão sendo modificadas. Eu acredito que se o paciente tem um câncer, é preciso combater o tumor, e não matar o paciente. Se é para incentivar um setor, é via tributo.
Impacto para o varejo
A medida impacta o varejo em particular porque a incidência da tributação se traduz em custo. Como o setor tem margens muito comprimidas, isso traz aumento de preço. O aperto na tributação das plataformas de e-commerce que vendem artigos importados, como Shein, Shopee e AliExpress, pode ajudar em negociações com o varejo.
— Pode ser uma moeda de troca do governo nos debates com o varejo sobre a tributação de benefício fiscal. Hoje, quem concorre com as asiáticas está sofrendo, porque elas vendem com preços mais baixos e sem tributação. É notícia boa — avalia Lustosa.
Relatório do Santander, assinado por Aline Cardoso e Ítalo Franca, olha de perto como esses benefícios aparecem nos balanços de companhias do varejo em 2022.
Como aparece em grandes empresas
Se houver mudança, quem tende a perder mais no varejo, segundo o relatório, é o Grupo Soma, dono de Farm, Animale e Hering. A companhia teve 44% do lucro líquido vindos desses benefícios.
Depois, viriam Via (de Casas Bahia e Ponto), com 41%; o Grupo Mateus, de varejo de alimentos, com 34%, e do Grupo SBF (de Centauro e Fisia, que opera a Nike no Brasil), com 31%.
Aline, estrategista institucional de ações do Santander Brasil, explica que não é possível dizer que existe uso equivocado do benefício.
— As empresas encontraram formas de ficar de pé, jogaram dentro do jogo e tentaram se proteger. Elas dizem que é tudo investimento. E, pela lei atual, é verdade — explica.
O impacto prático para o varejo vai depender da posição do STJ no próximo dia 26. Se decisão for favorável ao governo, as empresas perderiam parte do custeio.
— O natural seria repassar esse custo via preço ao consumidor, o que não é viável para todas as empresas. E isso vai virar inflação. Como o Banco Central vai cortar juros? — indaga ela. — Mas especialistas dizem que a tendência é que as empresas judicializem. Pode levar anos, saindo quando já estivermos no novo regime de tributação de consumo.
As empresas foram procuradas pelo Santander, diz Aline, mas não abriram dados. A exceção foi a Intelbras, que tem 50% do benefício usados para custeio. Em caso tributação dessa parte do benefício, a empresa poderia ter a receita líquida de 2023 impactada negativamente em até 10%.
Procuradas pelo GLOBO, as demais empresas não comentaram.