Economia
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Por Cláudia Meneses* — Vale do Maule, Chile

Herdeiros de pequenas propriedades que plantavam uma uva desvalorizada no Vale do Maule, a 250 quilômetros de Santiago, pensavam em arrancar vinhedos antigos, mas cheios de história familiar e da própria viticultura chilena. O ano era 2009, quando finalmente acharam uma saída para valorizar a uva País, uma variedade tradicional que remonta à colonização espanhola que foi perdendo terreno para as importadas ao longo dos anos na indústria de vinhos chilenos.

Os produtores se reuniram e iniciaram um processo de certificação para ingressar em programas de fair trade, o chamado comércio justo. E logo depois encontraram o mais importante: alguém disposto a pagar não só pelas uvas, mas pela história dessa região. Hoje, sai dos velhos vinhedos da cooperativa Esperanza de la Costa o sabor de um espumante com reconhecimento mundial.

— Estávamos destinados a desaparecer devido ao preço das uvas. Todos os pequenos estavam sem esperança e queriam arrancar seus vinhedos porque o negócio não era mais sustentável. E com muita dor porque eram vinhedos que haviam sido herdados dos pais, dos avós, com muito valor para nós — conta Secundina Vásquez Herrera, de 59 anos, líder da cooperativa.

Foi ela quem chegou a um comprador para as uvas, o grupo catalão Miguel Torres, que atua no Chile desde 1979 e está por trás de inovações como a introdução de tanques de aço inox no setor vitivinícola do país sul-americano, atualmente um dos maiores exportadores da bebida.

O grupo procurava uma uva com as características daquela região para produzir um espumante rosé. Adepta do comércio justo — que se baseia na remuneração adequada de pequenos produtores —, a empresa ofereceu à cooperativa 230 pesos chilenos por quilo. Naquela altura, o mercado só pagava 20.

— Os viticultores que não entraram na cooperativa desapareceram, arrancaram todos os vinhedos. Hoje somos 11 na Esperanza de la Costa — relata Secundina, destacando a mudança total para os agricultores da região, que melhoraram suas condições de vida e tiveram recursos para investir em outros projetos, como a transformação de toda a produção em orgânica.

— Todos os produtores têm as suas casas, os filhos estudaram. Minha filha é bioquímica e está trabalhando no Canadá. Nas vindimas (colheitas), todos ajudam. Não há outra forma porque a mão de obra é muito cara e os jovens migraram para a cidade. Somos pequeninos, mas a união faz a força, assim como a educação e a constância.

A pequena produtora chilena Secundina Vásquez e o enólogo Eduardo Jordán em um vinhedo de País — Foto: Divulgação
A pequena produtora chilena Secundina Vásquez e o enólogo Eduardo Jordán em um vinhedo de País — Foto: Divulgação

O espumante criado com a uva País é o Estelado, escolhido em 2016 o melhor do mundo produzido com uvas não tradicionais. O vinho tem recebido pontuações altas no Guia Descorchados, organizado pelo crítico chileno Patricio Tapia.

Na edição deste ano, ele apontou 19 vinhos chilenos com a País acima de 93 pontos, o que indica alta qualidade, numa escala que vai até 100. O mais bem cotado é o Lonquén Arriba 2021, da Corter Mollenhauer, com 95 pontos, de um vinhedo de mais de 100 anos às margens do Rio Lonquén, a apenas 26 quilômetros do mar.

Com a uva País, a Miguel Torres também produz o Millapoa, um vinho tinto cuja safra 2020 recebeu 91 pontos no Descorchados. Ele tem origem em vinhedos centenários localizados no vale do Rio Bío Bío, e as uvas são desengaçadas (separadas dos cachos) de forma ancestral, com peneiras. A fermentação ocorre em lagar de raulí (um tipo de madeira comum no Chile). Millapoa é nome de uma localidade, de onde os agricultores transportavam seus produtos pelo rio.

— Um dos responsáveis pelo auge da uva País foi precisamente Miguel Torres. Foi o segundo a se interessar pela uva, também pela tradição espanhola de vinhedos velhos — diz Tapia. — Desde o começo, o espumante Estelado foi uma referência do que se podia fazer com a País. Hoje em dia, esta uva basicamente é usada em vinhos tintos leves, frescos. A iniciativa de comércio justo de Miguel Torres é uma grande aposta, e espero que todos a sigam. A etiqueta de fair trade me agrada muito mais que as de biodinâmico ou orgânico.

O espumante Estelado: feito com a uva país — Foto: Divulgação
O espumante Estelado: feito com a uva país — Foto: Divulgação

O primeiro a reabilitar a uva País foi o francês Louis-Antoine Luyt, que chegou ao Chile em 2007 e lançou um vinho com ela chamado Uva Huasa, como são chamados os rótulos camponeses chilenos.

— Isso marca um antes e um depois da uva País no Chile. A partir desse vinho, que foi bem recebido nos circuitos estrangeiros, pessoas com paladar mais sofisticado começaram a se interessar pela variedade. E a País começou a reviver. Louis-Antoine Luyt é o responsável direto por essa valorização — relata Tapia.

Eduardo Jordán, diretor técnico de enologia da Miguel Torres, conta que o projeto do Estelado foi totalmente inusual:

— País era tido como um vinho genérico, e foi um acontecimento que todo mundo lembra usar uma variedade considerada de segunda ou terceira categoria. A busca foi com produtores pequenos interessados em participar de uma certificação de fair trade. A ideia era apoiar o produtor e buscar vinhedos que trouxessem acidez da uva. O problema da País é que ela tem uma acidez baixa e, por outro lado, produz amargos. Nosso trabalho é buscar o melhor período de colheita e um lugar que, acima de tudo, não seja muito quente para que a uva não perca a acidez. Trabalhamos os amargos na bodega para que o espumante não tenha esses sabores.

Secundina, que está á frente de cooperativa Esperanza de la Costa, no vinhedo  — Foto: Divulgação
Secundina, que está á frente de cooperativa Esperanza de la Costa, no vinhedo — Foto: Divulgação

Jordán conta que, este ano, o mercado pagou 85 pesos pelo quilo da uva País, mas a empresa desembolsou em torno de 300 pesos para os produtores do programa:

— Estamos falando de mais de três vezes. O produtor pode subsistir, trabalhar, ter rentabilidade. E pode perdurar no tempo. Com 85 pesos, está destinado a desaparecer. O fair trade não é apoio a uma variedade. É apoio à história vitivinícola, ao produtor, à pessoa que produz. Usamos o fair trade com os pequenos produtores, assegurando que eles tenham um preço digno. É win-win (ganha-ganha). Eles ganham porque têm preço justo, e nós também, porque fazemos o Estelado com um produtor que cumpre os critérios que estabelecemos.

Para Jordán, os produtores de uva País são parte da história do Chile:

— As modas vão mudando. Mas a história, o coração do lugar não pode mudar. Se nós mudamos e esse produtor de uva se for, quem vai ficar ali? Um bosque? E o bosque tem história? As pessoas que trabalham, o lugar que vivem, há ovelhas, animais.

O vinho Millapoa: tinto produzido com País no Chile — Foto:  Foto de Tomas Atria Camucet / Divulgação
O vinho Millapoa: tinto produzido com País no Chile — Foto: Foto de Tomas Atria Camucet / Divulgação

Uva vinda das Ilhas Canárias

Tapia explica que a chamada uva País é a Listán Prieto, originária das Ilhas Canárias, que foi levada ao Chile pelos conquistadores espanhóis, no século XVI. Na Argentina, é chamada de Criolla, e nos EUA, de Misión:

— Em 1550, 1560, já havia vinhedos de uva País no Chile, e ela foi a principal uva tinta com que se produziam vinhos. Não há referências de uvas francesas até 1850, quando se importam as primeiras variedades. Com Cabernet Sauvignon e Merlot, houve um dramático declive na popularidade da País, que foi associada a vinhos de camponeses. A faculdade de enologia ensina aos estudantes, futuros enólogos, que a País é uma variedade rústica, sem interesse em termos qualitativos.

Para o crítico, o vinho feito com País não somente ofereceu novos sabores para o vinho chileno, conhecido internacionalmente por rótulos com Cabernet Sauvignon e Carménère. Também deu às vinícolas do país a chance de apresentar histórias no mercado:

— O que também é muito importante é que a viticultura do Sul do Chile e as tradições ligadas ao vinho puderam mostrar uma narrativa muito mais sólida que a do passado. Antes, um produtor não vendia história, vendia qualidade. “Este Cabernet Sauvignon está muito bom”. Mas o que há por trás deste Cabernet? Nada. “Está muito bom, fizemos com alta tecnologia, blablablá”. Isso é aborrecido. Agora o Chile pode oferecer rótulos de vinhedos de 200 anos. “Que vinho ótimo, como foi feito?” Bem, foi feito com técnicas ancestrais, passadas por meu tataravô. É de um vinhedo de 200 anos que minha família plantou, dentro de uma área que se caracteriza por fazer este tipo de vinho. A importância da cepa País e dos vinhos feitos com ela não está somente nos sabores novos, mas na narrativa que oferece. E para vender vinho, há que se contar história.

Veja os melhores vinhos País pelo Guia Descorchados deste ano

  • Corter Mollenhauer (produtor) - Lonquén Arriba 2021 - (vinho e safra) - 95 pontos
  • Pino Román - Tinto País 2021 - 94 pontos
  • Ribera Huenchullami - Morros Costinos País 2021 - 94 pontos
  • Roberto Henríquez - Tierra de Pumas País 2021 - 94 pontos
  • Ana María Cumsille - Águila País 2021 - 93 pontos
  • Carter Mollenhauher - Aurora de Itata País 2022- 93 pontos
  • Estación Yumbel - Juana Rosa País 2022 - 93 pontos
  • Estación Yumbel - Pipeño País 2021 - 93 pontos
  • Garage Wine Co. - Old-Vine Revival - País 2021 - 93 pontos
  • Garcés Silva - Catalino País 2021 - 93 pontos
  • Itata Paraíso Wines - Rojo Paraíso País 2021 - 93 pontos
  • Kodkod - País 2022 - 93 pontos
  • La Causa - País 2021 - 93 pontos
  • Masintín- País 2021 - 93 pontos
  • Plan Biñadores - Super Choro Byron País 2021 - 93 pontos
  • Roberto Henríquez - Cerro La Trinchera País 2022 - 93 pontos
  • Roberto Henríquez - Santa Cruz de Coya País 2022 - 93 pontos
  • Vinos Alejandro Nuñez - Torreón País 2021 - 93 pontos
  • Viña Umpel - Del Peregrino País 2021 - 93 pontos

*Viajou a convite da Miguel Torres e da Qualimpor

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