Como regular a inteligência artificial sem matar a inovação? Qual o risco do rápido avanço da tecnologia em um ambiente sem regras? Essas foram algumas das questões levantadas durante o Web Summit Lisboa, nesta terça-feira, em uma parte da programação do evento português dedicada especialmente a tratar de regulação.
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Essa é a primeira vez que a maior conferência de tecnologia e inovação da Europa tem uma parte específica da agenda voltada ao tema. Sem grandes empresas de tecnologia como Meta, Google e Amazon, as discussões foram lideradas por pesquisadores e representantes de governos, terceiro setor e startups.
Regulação da IA é "algo sobre o qual devemos, absolutamente, conversar coletivamente", disse Sally Costerton CEO da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN), organização responsável por coordenar e regular os endereços da internet, como os domínios ".com" ou ".br".
Veja imagens criadas por O GLOBO com ajuda do Midjourney, site de inteligência artificial
— O primeiro impacto (da IA) é a confiança. A confiança é a base do que tornou a Internet um sucesso nos últimos 30 anos. Agora vamos ter uma geração que irá lidar com mais informações falsas e mais incerteza sobre quem as pessoas são — afirmou Costerton. Ela ponderou, no entanto, que a tecnologia não deveria ser demonizada.
Como regular a inteligência artificial
Brittany Kaiser, cofundadora da Own Your Data Foundation, ressaltou que a regulação da IA precisa ser feita a partir de um trabalho conjunto de "legisladores, reguladores e tecnólogos". Kaiser ficou conhecida, entre outros motivos, por revelar informações de bastidores sobre o escândalo de venda de dados de usuários do Facebook para a Cambridge Analytica, empresa onde trabalhou.
— O melhor e mais importante tipo de regulamentação é a formulada por quem entende como a tecnologia funciona. Você tem que analisar peça por peça, como definições legais básicas de mecanismos que compõem a inteligência artificial, incluindo custódia e propriedade de dados — analisou a ativista.
Kaiser criticou o fato de os EUA terem tratado do tema com uma ordem executiva e não por meio de legislação aprovada no Congresso. Mick Mulvaney, ex-diretor do Escritório de Gestão e Orçamento dos EUA (OMB) e ex-chefe de gabinete da Casa Branca, concordou.
— Disseram, na Casa Branca, que esta ordem executiva tem força de lei. Não é a mesma coisa. E meu medo é que agora as pessoas olhem para a IA e digam: "Ok, terminamos por enquanto. Não precisamos fazer nada" —afirmou Mulvaney, em referência à ordem executiva sobre IA assinada por Joe Biden em outubro.
Mulvaney acrescentou que "não é todo o dia" que figuras como Elon Musk vão até Washington para pedir uma regulação, ao criticar a demora do congresso americano ao lidar com o tema.
Em outro palco, representantes dos governos de Cabo Verde e da Sérvia trataram do tema com olhar específico de países que estão fora do eixo de produção de tecnologia, mas que são afetados pelo desenvolvimento delas.
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— O quão fácil é dialogar com essas grandes empresas de tecnologia, sendo um país pequeno como somos? — questionou Pedro Lopes, Secretário de Estado para Economia Digital de Cabo Verde — Queremos que elas operem, mas, ao mesmo tempo, queremos que o façam sob regras que protejam as pessoas e os estados.
Conversas difíceis sem as big techs
Apesar de estarem no centro das discussões da conferência em vários momentos, as gigantes do Vale do Silício não participaram das conversas deste ano. O WebSummit é conhecido, entre outras coisas, por receber executivos de tecnologia que estão à frente de redes sociais populares e de plataformas digitais usadas por milhões de pessoas.
A debandada aconteceu depois que o então CEO do Web Summit, Paddy Cosgrave, teceu críticas contra Israel nas redes sociais, em razão da guerra. Ao abrir a programação do evento, a nova presidente do Web Summit, Katherine Maher, defendeu "o direito à liberdade de expressão", as conversas difíceis e o debate "com respeito".
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Com programação até quinta-feira, o Web Summit deve receber 70,1 mil pessoas, de mais de 160 países. O espaço escolhido para receber os debates de regulação, chamada Policymaker (algo como "formulador de políticas", em português), foi o último e menor dos cincos pavilhões do festival. O espaço era o mais distante da Altice Arena, a área nobre do Web Summit, reservada para os painéis principais.
Durante a manhã de terça-feira, o espaço diminuto foi insuficiente para abrigar todos os interessados no tema. Em ao menos quatro painéis, algumas dezenas de pessoas precisaram acompanhar as conversas de pé.
No palco principal, a mesa que abriu o dia trouxe uma visão bem mais otimista da IA e pessimista sobre os efeitos negativos da regulação. Andrew McAfee, cofundador e codiretor da Iniciativa MIT sobre Economia Digital, se definiu como defensor da inovação "sem permissões" e ressaltou que a governança excessiva gera riscos para avanços na tecnologia.
*Juliana Causin viajou a convite do Web Summit