O Plano Real, que agora completa 30 anos, foi único no mundo. Do ponto de vista da arquitetura econômica, baseou-se na heterodoxia da moeda indexada, a URV — Unidade Real de Valor, jamais tentada antes nem depois, mas também inovou no campo da comunicação.
Na fase mais delicada, anterior à vigência da nova moeda, contou com um ministro da Fazenda que, ao invés de falar para o mercado financeiro e os empresários falava para o povo, e com economistas dotados do mais alto preparo técnico que passaram a frequentar as páginas dos jornais com regularidade nunca imaginada.
Não havia a figura de um porta-voz do plano, mesmo porque não se empresta a voz quando a credibilidade de um projeto futuro é o objetivo maior. Para dirimir as dúvidas de ordem técnica, as entrevistas eram dadas diretamente pelos formuladores do plano, donos das ideias e das soluções que levariam à estabilização.
“Você quer que eu fale com essa rádio que fica nos confins do Amazonas?”, perguntou, certa vez, Edmar Bacha. “Claro, mesmo lá é preciso que as pessoas acreditem no Real”.
Toda a estratégia de comunicação foi montada na premissa de que nenhum jornalista, não importa onde estivesse, deixaria de ser atendido. Não havia verba pública para uma campanha do Real, mas nem por isso recorreu-se ao uso de expedientes como press releases ou outros tipos de comunicados oficiais que impõem a informação pronta, protegida de questionamentos.
Portanto, diferente do Plano Collor, urdido às escondidas, e do Plano Cruzado, movido pelo deslumbramento desenfreado, o Plano Real foi feito às claras, com parcimônia e um sentido de responsabilidade que tornava cada passo consistente com o anterior.
A transparência na comunicação teve importância especial nos momentos de maior tensão, como nas discussões sobre a regra do reajuste automático dos salários com vigência até 30 de junho de 1995 e do IPC-r usado naquela correção, na divergência entre os vários índices de preços, na etapa da controversa valorização cambial e na “farra” dos importados.
![Maria Clara R. M do Prado foi coordenadora da campanha de divulgação do Plano Real — Foto: Valor](https://s2-oglobo.glbimg.com/ZLfvpfGxg5JP7rhqyTj--u6EDtM=/0x467:1049x1544/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/4/1/sLPkejTVKI8LouaBpmOw/whatsapp-image-2024-06-30-at-22.24.38.jpeg)
E havia razões de sobra para a condução de uma comunicação transparente. Primeiro, pelo fato de o Real ter sido implementado de forma gradual. A complexidade do programa implicava tomar decisões ao longo do processo que precisavam ser bem explicadas, sob pena de não se chegar à etapa seguinte.
Segundo, pelo fato de ter sido implementado depois de vários fracassos, o que exigia encarar de frente os eventuais ruídos a meio do caminho. Terceiro, pelo receio de as pessoas desistirem de esperar pela chegada do real e começarem a inflacionar a URV.
Na medida das possibilidades, tendo em vista a apertada agenda dos formuladores da nova moeda, mergulhados nos compromissos de suas funções executivas no governo, por um lado, e, por outro, nas reuniões sem fim dedicadas à definição dos detalhes do plano, atender a mídia virou uma prioridade.
Em paralelo, enquanto ocupou a pasta da Fazenda, o ministro Rubens Ricupero se dirigia regularmente à população via rede de rádio e de TV com mensagens simples para facilitar o entendimento do que a nova moeda representaria no cotidiano das pessoas. Tudo isso ajudou a construir uma espécie de pacto social espontâneo em torno do Real, antes mesmo do dia 1º de julho de 1994.
Os economistas do Real, sem exceção, mantinham-se à disposição não apenas para as entrevistas pontuais, mas também abriram espaço em suas agendas para a série de conversas organizadas em bases regulares, a cada 15 dias, com formadores de opinião da chamada grande imprensa em Brasília, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Essas conversas não tinham tempo para acabar. Duravam por pelo menos três horas, sem restrição às perguntas. Depois da nova moeda ter sido lançada, aqueles encontros passaram a acontecer a cada aniversário de mês do Real, seguidos do aniversário anual, uma prática que se fixou no imaginário da mídia e que faz com que até hoje se comemore com farta visibilidade a data de nascimento da moeda.
O Real tornou-se possível porque predominou a visão de homem público de Fernando Henrique Cardoso e dos demais integrantes do plano, predispostos a abrir mão da comodidade pessoal em nome de uma conquista maior, conforme lembrado pelo então vice ministro da Fazenda, Clovis Carvalho, no evento de 30 anos do Real da Fundação FHC.
O espírito do dever cívico, matéria rara hoje, mobilizou todas as pessoas envolvidas com o programa. Arrisca-se dizer que ninguém saiu daquela experiência do mesmo jeito como entrou.
Maria Clara R. M do Prado foi coordenadora da campanha de divulgação do Plano Real, é autora do livro "A real história do Plano Real" e colunista do Valor