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Economia

Pandemia do coronavírus deve mudar a face do capitalismo, afirmam especialistas

Empresas serão cobradas para terem atividades mais voltadas à sociedade, após ajuda oficial de trilhões de dólares, dizem
Mulher atravessa a Ponte de Westminster, vazia. Reino Unido liberou 418 bilhões de libras para minorar efeitos da pandemia. Foto: HANNAH MCKAY / REUTERS
Mulher atravessa a Ponte de Westminster, vazia. Reino Unido liberou 418 bilhões de libras para minorar efeitos da pandemia. Foto: HANNAH MCKAY / REUTERS

LONDRES - O confinamento inédito de metade da população mundial e o consequente pandemônio que se abateu sobre as economias globais devem mudar a face do capitalismo . A relação entre empresas, sociedade e governos mudou. Dificilmente voltará a ser o que era, na avaliação de especialistas. Fala-se até em um novo contrato social .

Grandes corporações e bancos sobretudo, socorridos com trilhões de dólares na crise financeira global de 2008, serão cobrados. Os mercados terão nova missão. Diante dos esforços para reconstruir as economias — só o Reino Unido já liberou 418 bilhões de libras (mais de R$ 2,5 trilhões) em pacotes de estímulos para minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus —, a fatura começa a ser apresentada. O que se espera é um capitalismo mais benevolente.

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— Assim como os contribuintes ajudaram a salvar os bancos em 2008, o governo agora quer trabalhar com os bancos para retribuir o favor e apoiar empresas e pessoas, as que mais precisam no Reino Unido — disse o ministro de Negócios, Energia e Estratégia Industrial, Alok Sharma.

Impostos mais altos

A declaração foi feita nos boletins diários do governo conservador britânico à televisão semana passada. O mesmo partido que, há mais de dez anos no poder, empunhava a bandeira da austeridade fiscal até pouco tempo atrás.

— Será totalmente inaceitável se os bancos rejeitarem empréstimos para as boas empresas — completou Sharma.

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A presença do Estado deve ser maior daqui por diante como catalisador da recuperação. Sobretudo depois dos pacotes multibilionários de estímulos. A ajuda é para manter a economia em “hibernação”, diz Abhimay Muthoo, professor de economia e reitor da Universidade de Warwick:

— É preciso saber por quanto tempo os países conseguem manter a economia hibernando. Isso vai determinar o ritmo da retomada. O certo é que haverá nova ordem internacional. Vamos precisar de uma sociedade mais generosa, o que se traduz em redistribuição de renda, impostos mais altos, serviços públicos eficientes e Estados com presença maior do que nos últimos anos.

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Espera-se uma recessão global. Itália e Espanha, as nações com o maior número de casos da Europa, devem perder 15% do PIB no primeiro trimestre, segundo a Oxford Economics.

— Governos poderão deixar claro às empresas que precisarem de apoio que ele dependerá de certos critérios. Outro ponto que me parece óbvio é que os dias de uso exagerado de recompra de ações para a maximização excessiva de lucros, possivelmente às custas de outros fins, podem ter acabado — disse Jim O’Neill, presidente da Chatham House, um dos centros de pesquisa mais prestigiados da Europa.

Recompra de ações

Ex-economista-chefe do banco Goldman Sachs e criador, em 2001, do acrônimo Brics — grupo de países em desenvolvimento que seriam as locomotivas da economia global: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, O’Neill trabalhou no mercado financeiro por mais de duas décadas. Mas há alguns anos defende um novo propósito para os lucros das empresas.

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Segundo ele, em 2018, o total de operações de recompra de ações pelas dez maiores companhias americanas ficou próximo de US$ 1 trilhão. E os maiores compradores eram elas próprias, que teriam se tornado, nas palavras de O’Neill, meras administradoras de balanços, obcecadas por desempenho.

Em 2018, sugeriu taxar mais este tipo de operações, e dar crédito tributário para os gastos das empresas com investimentos. No limite, até mesmo tornar ilegais as operações de recompra em companhias com produtividade baixa. O tema estaria sendo estudado pelo governo britânico.

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No ano passado, o Business Roundtable, que reúne presidentes de grandes empresas americanas, já falava no fim da cultura dos “acionistas primeiro”. Para a Social Market Foundation, as companhias têm a oportunidade de criar uma nova relação com a sociedade.

Novo contrato social

O diretor da entidade, James Kirkup, afirma que as empresas “deveriam concordar com um novo contrato social baseado no cumprimento das obrigações tributárias, no tratamento aos trabalhadores e no apoio às comunidades em troca da ajuda recebida durante a crise do coronavírus.

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Uma das conclusões de um relatório coordenado por O’Neill para o governo britânico sobre a crescente resistência aos antibióticos era a de que a falta de investimentos para resolver o problema custará ao planeta dez milhões de vidas por ano a partir de 2050 em razão de infecções (e da falta de antibióticos). E causará prejuízo de US$ 100 trilhões à economia global.

O documento defende 29 intervenções que custariam US$ 42 bilhões para resolver a questão.

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Segundo O'Neill, o valor é menos do que o que as três maiores companhias farmacêuticas destinaram à recompra de suas próprias ações ao longo de uma década:

— Não é nada comparado aos custos de não resolver o problema ou ao colapso causado pela Covid-19 .