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Economia Auxílio emergencial

Pandemia empobrece a classe média: 'Vários passos para trás', diz empreendedora sem renda

Cerca de 60 milhões de pessoas hoje vivem em lares com renda inferior a R$ 450 por pessoa. Um terço delas não era pobre em 2019
Retrocesso: A esteticista Adria Rodrigues (à direita) perdeu seu negócio. Com o marido desempregado, a casa só tem a renda dos pais deles, que estão aposentados Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Retrocesso: A esteticista Adria Rodrigues (à direita) perdeu seu negócio. Com o marido desempregado, a casa só tem a renda dos pais deles, que estão aposentados Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

RIO - A perda da convivência, de abraços e, até mesmo, da vida de um ente querido não são as únicas consequências devastadoras da pandemia para diversas famílias brasileiras.

A crise gerada pelo novo coronavírus leva embora conquistas que, em sua maioria, demoraram a ser obtidas: um bom emprego, um negócio próprio, a casa.

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No ano passado, o auxílio emergencial , que chegou a 67,8 milhões de pessoas, tirou 14 milhões de cidadãos da linha da pobreza e evitou que outros 14 milhões entrassem nessa condição.

Mas agora, sem o benefício , um forte retrocesso alcança até quem já estava na classe média e se viu, de repente, sem renda.

Cálculo do economista e pesquisador da FGV Daniel Duque, feito a pedido do GLOBO, mostra que cerca de 60 milhões de pessoas hoje estão na pobreza: vivem em lares com renda inferior a R$ 450 por pessoa.

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Desse total, pouco mais de um terço, cerca de 22 milhões, não eram vulneráveis em 2019.

Sonho de empreender interrompido

Em 2017, após anos em três clínicas de estética diferentes, a esteticista e terapeuta Adria Rodrigues, de 42 anos, conseguiu finalmente abrir o próprio espaço.

A esteticista Adria Rodrigues morava com o marido Marcus Rodrigues, que está desempregado, o filho Enzo e a sogra Leci Rodrigues. Com a pandemia, a empreendedora teve que fechar a clínica de estética e trazer para o Rio os pais, Maria Luiza e Walter Amazonas, que moravam em Manaus. Hoje são seis morando na casa e a renda vem da aposentadoria dos idosos Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
A esteticista Adria Rodrigues morava com o marido Marcus Rodrigues, que está desempregado, o filho Enzo e a sogra Leci Rodrigues. Com a pandemia, a empreendedora teve que fechar a clínica de estética e trazer para o Rio os pais, Maria Luiza e Walter Amazonas, que moravam em Manaus. Hoje são seis morando na casa e a renda vem da aposentadoria dos idosos Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Com o fechamento das atividades no Rio e em várias cidades do país no início da pandemia, ficou inviável arcar com o aluguel do estabelecimento, em torno de R$ 2.500.

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Para continuar a trabalhar, ela desocupou o quarto do filho para instalar seus equipamentos e atender em casa, onde vivem também o marido e a sogra.

Menos de um mês depois, um novo obstáculo: os pais, que moram em Manaus, precisaram de uma cirurgia, e ela teve de viajar para cuidar deles. Com a crise sanitária e o risco de a irmã, enfermeira, contaminar os pais, ela os trouxe para o Rio.

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Estão no quarto do filho, e seu espaço de atendimento foi desmontado mais uma vez. Com marido desempregado desde 2016, a renda familiar agora é composta pelas aposentadorias dos três idosos da casa.

'É como se eu estivesse dando vários passos para trás', define Adria, ao contar como se sentiu ao ver seu sonho de empreendedora desmoronar.

— Uma parte importante da população que não era pobre e estava trabalhando de modo informal na área de serviços foi muito afetada pela pandemia. Muitas dessas pessoas não estavam no cadastro único. Ganharam o auxílio emergencial mas, com o fim do benefício, sem possibilidade de ter o Bolsa Família e com uma segunda onda do vírus, são empurradas para a insuficiência de renda — analisa o economista Daniel Duque.

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Medo de perder a casa própria

Adria revela o temor de perder o que já conquistou com muito trabalho duro, como a casa própria:

— Tive que largar tudo duas vezes. O mercado de trabalho está cruel. Meu marido é administrador, tem pós-graduação, mas sempre dão preferência para pessoas mais novas. Estou tentando, de alguma forma, trabalhar por conta própria, mas, se não conseguir, vou ter que voltar a trabalhar para outros, até porque nosso imóvel é financiado e não estamos com as parcelas em dia.

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Com o estado natal no sobrenome, os pais de Adria, Walter e Maria Luiza Amazonas, de 71 e 72 anos, respectivamente, não saem por conta do risco da pandemia.

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A família teme o futuro, mas, como se para ter de volta sorrisos perdidos, não deixou faltar um bolo de chocolate para comemorar o aniversário da esteticista, na última quinta-feira.

O sommelier Iran Santos de Araújo trocou São Paulo pelo Rio na tentativa de achar um emprego, mas terminou sem trabalho e sem teto Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
O sommelier Iran Santos de Araújo trocou São Paulo pelo Rio na tentativa de achar um emprego, mas terminou sem trabalho e sem teto Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Do salão do restaurante à rua

Sommelier, garçom, habilidoso no preparo de drinques, Iran Santos Araújo, de 38 anos, já teve renda de quase R$ 3 mil e tinha carteira assinada até o ano passado.

Desempregado, recebeu o auxílio emergencial até dezembro. Resolveu deixar São Paulo com o pouco dinheiro que restou na esperança de encontrar um emprego no Rio.

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Combinou de morar na casa de um amigo, que não cumpriu a promessa. Não teve escolha. No dia em que conversou com O GLOBO, estava há cinco dias dormindo na rua, uma experiência que nunca pensou viver.

— Tenho 22 anos de profissão. Nunca precisei de um currículo. Tenho que encontrar um emprego — diz, esforçando-se para manter essa esperança em seus olhos, mas, realista, mostrando-se preocupado como o fato de não ter residência fixa e não poder pagar a pensão dos quatro filhos, que moram com a mãe. — Que ninguém passe o que tenho passado.

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Impacto maior no Nordeste

Segundo o pesquisador Daniel Duque, a geração de novos pobres é mais forte no Norte e no Nordeste, onde 20% dos que estavam no que se pode considerar classe média no Brasil tiveram perda aguda e abrupta na renda.

No Centro-Oeste e Sudeste, cerca de 13%. No Sul, 8%. Ele estima que 16% dos que já eram pobres em 2019 passaram para a extrema pobreza, com renda per capita inferior a R$ 157. São 6,2 milhões.

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— Sem dúvida, estamos em uma situação em que a retomada da renda depende de políticas públicas. A plena atividade econômica depende muito da capacidade do governo de fazer a vacinação — observa o economista.

Duque avalia que só em 2023 haverá condições de uma recuperação forte da economia e do mercado de trabalho:

— Os empregos não voltam rapidamente. Considerando, no mínimo, um ano para que a população inteira seja vacinada, demoraria mais um para acontecer a retomada, até porque o nível de renda dos consumidores está menor. Numa previsão bem otimista, apenas em 2023 aqueles que desceram à pobreza conseguiriam restabelecer sua posição anterior.