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Petrobras vende refinarias, gasodutos e campos de petróleo, mas, sem concorrentes, ainda define os preços

Estatal se desfez de cerca de 80 empreendimentos desde 2011
Presidente Bolsonaro afirmou que a privatização da Petrobras "entrou no radar" do governo Foto: Agência Petrobras

RIO — Uma década depois de a Petrobras ter iniciado um ambicioso programa de venda de alguns de seus negócios, a estatal ainda deixa pouco espaço para a concorrência. Desde 2011, a empresa já se desfez de 80 ativos, como campos de petróleo, refinarias e gasodutos, mas pouco mudou em sua posição dominante no setor.

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Responde pela operação de 92% da produção de óleo e gás, 98% do refino para a produção de combustíveis e entre 80% e 85% do abastecimento de gasolina e diesel.

A presença maciça da Petrobras e obstáculos técnicos e regulatórios para ampliar a competição no setor dificultam um alívio em preços como os dos combustíveis em momentos de alta do petróleo no mercado global, como agora. Só este ano, gasolina e diesel já subiram cerca de 45% nas bombas e mais de 60% nas refinarias da estatal.

Em 2019, a Petrobras firmou com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que regula a concorrência no país, um acordo de venda de ativos em gás e refino para suspender um inquérito administrativo sobre suposto abuso de posição dominante.

O objetivo era estimular o surgimento de competidores em segmentos monopolizados pela estatal, favorecendo a redução dos preços de produtos como gasolina, diesel, gás industrial e de cozinha. Mesmo com a venda de subsidiárias como BR Distribuidora e Liquigás, de distribuição de botijões, os preços não cederam. O gás de cozinha (GLP) subiu 36% só neste ano, e o GNV, para carros, 33%.

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Na semana passada, em viagem à Itália para a cúpula do G20, o presidente Jair Bolsonaro disse que a Petrobras é “o principal problema” do governo.

Ontem, em Ponta Grossa, no Paraná, disse a apoiadores que quer “ficar livre” da empresa e que estuda o fatiamento ou até partir para a privatização da companhia. Ele citou o aumento de combustíveis e lamentou a independência da estatal.

Com incertezas geradas pelas ameaças de Bolsonaro de intervir nos preços dos combustíveis — que, na Petrobras, acompanham fatores como a cotação internacional do petróleo e o câmbio —, a estatal tem tido dificuldades para achar compradores para suas refinarias.

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Das oito que colocou à venda, que somam 50% da sua capacidade de produção de combustíveis, só se desfez de duas: Rlam , na Bahia, e Reman, no Amazonas . Unidades em estados importantes, como Repar (PR), Refap (RS) e Renest (PE) têm poucos interessados e ofertas abaixo do esperado pela estatal. O Cade prorrogou o prazo uma vez e diz que todas devem deve ser vendidas até o fim deste ano.

Petrobras vendeu a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), localizada no Recôncavo Baiano, e mais sete unidades de refino, para para fundo árabe por US$ 1,6 bi. Foto: Geraldo Kosinski / Agência O Globo
Primeira refinaria do Brasil, a RLAM completou 70 anos prestes a ser vendida. A unidade tem capacidade de produção de 333 mil barris/dia. Foto: Saulo Cruz / MME
A Refinaria Isaac Sabbá (Reman) foi vendida em agosto para a Atem por US$ 189,5 milhões. A unidade foi inaugurada em 3 de janeiro de 1957 e está localizada à margem esquerda do Rio Negro, em Manaus, estado do Amazonas. Em 31 de maio de 1974, foi incorporada ao Sistema Petrobras Foto: Reprodução
A estatal suspendeu o processo de venda da Refinaria Abreu e Lima (RNEST), e decidiu investir US$ 1 bi na unidade, que iniciou suas operações em 2014. Está localizada no Complexo Industrial Portuário de Suape, distante 45 km do Recife, em Pernambuco. Foto: Wilton Junior / Agência O Globo
A RNEST, que foi alvo da Lava-Jato, tem capacidade de processamento de 230 mil barris de petróleo por dia. Nesta unidade, são produzidos derivados de petróleo, como nafta, diesel e gás liquefeito de petróleo (GLP) Foto: Reprodução/Site da Petrobras
A Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), no Paraná, tem capacidade de processamento de 33 mil m³ de petróleo por dia. Segundo fontes, os grupos Ultra, dono dos postos Ipiranga, e Raízen, associação de Cosan e Shell, estão interessados na compra Foto: Silvio Aurichio / Agência O Globo
Localizada no município de Araucária, no Paraná, a Repar é responsável por aproximadamente 12% da produção nacional de derivados de petróleo, ente eles diesel, gasolina, GLP, coque, asfalto, e propeno Foto: Silvio Aurichio / Agência O Globo
Refinaria Alberto Pasqualini (Refap) está instalada em uma área de 580 hectares no município gaúcho de Canoas (RS). Foto: Divulgação
A Petrobras também já vendeu a Unidade de Industrialização do Xisto (SIX) para o grupo F&M por R$ 178 milhões. A SIX fica localizada em São Mateus do Sul (PR) sobre uma das maiores reservas mundiais de xisto Foto: Divulgação
A Refinaria Gabriel Passos (Regap), em Betim, região metropolina de Belo Horizonte (MG), foi inaugurada em 30 de março de 1968, com capacidade inicial de 7.200 m³/dia. Hoje, sua capacidade de processamento é de 24 mil m³/dia ou 150 mil bbl/dia Foto: Ramon Bitencourt / O Tempo
Refinaria Lubrificantes e Derivados do Nordeste (Lubnor), no Ceará, é uma das líderes na produção de asfalto no Brasil, sendo responsável por cerca de 10% da produção do produto no pais. Foto: Divulgação

 

Acesso livre, mas ocupado

Para especialistas, o risco de interferência do governo nos preços afasta investidores. Além disso, aspectos técnicos relacionados ao modelo das refinarias e suas estruturas complementares dificultam o surgimento de novos competidores, ainda que uma unidade da Petrobras passe para mãos privadas.

Magda Chambriard, ex-diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e coordenadora de pesquisa de óleo e gás da FGV, cita a venda da refinaria da Bahia como evento cercado de incertezas.

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A Petrobras vendeu toda a infraestrutura associada à unidade de refino, como os dutos, para o fundo de investimentos Mubadala , dos Emirados Árabes, por US$ 1,65 bilhão.

— Se o novo comprador terá acesso a toda a infraestrutura local, que já estará ocupada com a própria operação da refinaria, como vai ser a concorrência na Bahia, que é um estado enorme? Entre os caminhões? Serão criados monopólios regionais, pois a Petrobras desenvolveu todas as suas refinarias no país para operarem de forma complementar. Por isso, a maior parte da venda de ativos da Petrobras é ineficaz para aumento da concorrência — diz a especialista.

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Para alcançar os objetivos do acordo com o Cade, dizem os especialistas, é preciso que o governo crie regras eficazes para permitir o livre acesso às infraestruturas de escoamento, hoje limitado ao espaço aberto pela Petrobras.

No setor de gás natural, a venda das redes de gasodutos TAG e NTS integrou um plano do governo para tornar o gás uma fonte de energia mais barata para indústrias.

A gasolina já chegou a quase R$ 8 em alguns postos Foto: Fábio Rossi

Executivos do setor observam que, na prática, a Petrobras manteve contratos de uso dessa infraestrutura pelas próximas décadas, com cláusulas de renovação.

Assim, as chamadas públicas feitas pelos novos donos dos gasodutos abrem espaço para transporte de um volume pequeno de gás de outras empresas, incapaz de alterar a estrutura de preços definida pela estatal.

A Petrobras se desfez este ano da Gaspetro , uma subsidiária sócia de 19 distribuidoras de gás no país. Ainda assim, observa Edmar Almeida, pesquisador do Instituto de Energia da PUC-Rio, a estatal influencia o preço porque é a única fornecedora de gás para elas.

E isso está longe de mudar, já que a estatal concentra seus investimentos na exploração do pré-sal, responsável por 71% da produção de gás no país.

Mesmo na produção de petróleo e gás, cujo monopólio foi extinto há 24 anos, a Petrobras segue dominante. Segundo a ANP, a estatal produz 3,6 milhões de barris por dia, 92% do total no Brasil.

Almeida também defende nova regulamentação para que a iniciativa privada consiga acessar a infraestrutura e possa disputar com a Petrobras, criando novos negócios.

— Falta engajamento de todos, da Petrobras, do governo e do Cade. As autoridades públicas precisam ser mais atuantes no processo de monitoramento de venda. Na hora que vende uma refinaria e o gasoduto, qual será a regra de acesso à infraestrutura? A venda de ativos tem que andar em paralelo com as reformas, que são muito lentas. E quando você não vê queda nos preços acaba se perdendo a motivação política.

Vendas começaram em 2011

A Petrobras iniciou um plano formal de venda de ativos, com o objetivo de concentrar investimentos no pré-sal, em 2011, no governo de Dilma Rousseff.

Não há um balanço oficial da estatal, mas um levantamento feito pelo Dieese e pela Federação Única dos Petroleiros (FUP), que se opõe às vendas, estima que já foram vendidos mais de 80 ativos, somando cerca de US$ 50 bilhões, o equivalente a R$ 275 bilhões no câmbio atual.

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Para Deyvid Bacelar, coordenador-geral da FUP, é falso o argumento de que a venda de ativos favorece a queda de preços de derivados de petróleo. Para ele, apenas ter um agente privado no lugar da Petrobras não representa concorrência:

—Vender não é investir. O Brasil precisa de mais refinarias, pois há alta na demanda. Para o investidor é mais interessante entrar e comprar algo já pronto, pois é mais barato. Por que essas empresas privadas não investem em novos gasodutos, refinarias e terminais? Além disso, a política de paridade internacional de preços só beneficia os acionistas da estatal e os investidores.

O Cade informou que está constantemente atento a qualquer prática de mercado que constitua infração à lei e que atua, quando necessário, para corrigir questões de abuso de poder econômico. Indagado sobre os motivos de a venda de ativos de gás ainda não ter se refletido em preços menores, afirmou que não cabe ao órgão se manifestar sobre a questão.

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Sobre as refinarias, o órgão disse que o prazo para a conclusão e efetivação das vendas permanece o mesmo para todas as operações: 31 de dezembro de 2021.

A Petrobras afirmou que “segue plenamente comprometida com a venda de oito refinarias, em alinhamento à sua estratégia de gestão de portfólio e ao compromisso firmado com o Cade para vender 50% de sua capacidade de refino”.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Petrobras afirma que "a concorrência já existe e vai aumentar com a venda das refinarias". Ela pondera que o Cade, órgão de defesa da concorrência, analisou o modelo de abertura do mercado de refino e concordou com ele.

Segundo o modelo, duas refinarias vizinhas não poderão ser adquiridas pelo mesmo comprador, elevando a competição regional.

A Petrobras afirma que "contribui ativamente para a construção de uma economia mais competitiva e dinâmica e apoia a ideia da entrada de novas empresas no mercado brasileiro de refino e de exploração e produção de petróleo e gás". Segundo ela, com a abertura do mercado, a competição resultará em aumento de investimentos e de produtividade, inovações e benefícios para a sociedade.