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Economia Gastronomia

Quentinha chique vira novo negócio na alta gastronomia do Rio durante a quarentena

Chefs de restaurantes estrelados trocam pratos por embalagens para entrega pela primeira vez. Com bons resultados, vão manter delivery no pós-pandemia
Chef Luigi Moressa no restaurante Gero Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
Chef Luigi Moressa no restaurante Gero Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

RIO - A alta gastronomia carioca anda se reinventando. Ou se renovando, como preferem definir os chefs que seguem tocando suas cozinhas “do jeito que dá”. E o jeito que vem dando é o delivery , que já virou uma tendência que deve permanecer no pós-pandemia .

A saída é óbvia para a maioria dos negócios do ramo , mas em alguns dos restaurantes estrelados do Rio é a primeira vez que um chef troca a composição de um prato por uma embalagem, ainda que bem charmosa.

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Com a reabertura gradual à vista depois de uma longa quarentena, os serviços de entrega viraram novas oportunidades negócios para essa turma, que ainda tem pela frente um cardápio indigesto de prejuízos a serem recuperados.

Muitos restaurantes do Rio não vão nem reabrir , mas, felizmente, há pitadas de otimismo em meio à crise.

Rafa Costa e Silva, à frente do Lasai, em Botafogo — no ranking dos melhores restaurantes do mundo — encontrou no delivery uma reinvenção, já que nunca tinha feito isso.

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Após 90 dias de portas fechadas, Rafa Costa e Silva, à frente do Lasai, em Botafogo, encontrou no delivery um meio de se reinventar Foto: Divulgação
Após 90 dias de portas fechadas, Rafa Costa e Silva, à frente do Lasai, em Botafogo, encontrou no delivery um meio de se reinventar Foto: Divulgação

Ele abriu o Empório Lasai, que aproveita o interesse crescente das pessoas em colocar a mão na massa. Manda para a casa do cliente, dentro de uma caixa lindamente montada, todos os ingredientes para uma experiência completa no padrão Lasai, com entrada, principal e sobremesa. Sai por R$ 290 para duas pessoas.

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— Não se leva mais de 15 minutos para preparar. Mando tudo 90% pronto, para dar a possibilidade de o cliente finalizar, inovar e se divertir também — diz Rafa. — É o jeito. A pandemia e a crise vão se estender por um bom tempo. Não penso em abrir por agora. Daí, parti para um negócio novo. Preciso pagar as contas.

Felipe Bronze, o único detentor no Rio de duas estrelas Michelin, com o seu Oro, no Leblon, concorda que muitas restrições perdurarão após a quarentena e diz que restaurantes como o dele serão cada vez mais para poucos:

— O mercado vai encolher muito. Teremos menos clientes para atender, menos pessoas trabalhando. A solução está na casa das pessoas. É para lá que os restaurantes terão que ir — diz Bronze, cujo principal auxiliar, o chef Rodrigo Guimarães, toca o delivery At home com criações próprias.

Potinhos com pratos pré-prontos que o Lasi passou a enviar para a casa dos clientes Foto: Divulgação
Potinhos com pratos pré-prontos que o Lasi passou a enviar para a casa dos clientes Foto: Divulgação

Na garupa da ‘scooter’

E os restaurantes “estão indo” com embalagens caprichadas e eficientes, além de pratos mais elaborados e alguns serviços impensáveis há algum tempo. Como a incursão inédita do Cipriani no serviço em domicílio.

O chef Nello Casesse reuniu em uma caixa o “Menu do Chef”, referindo-se à mesa para lá de exclusiva que o restaurante do Copacabana Palace mantém dentro da cozinha.

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Nela são servidas as mais finas iguarias da casa. A ação do Cipriani foi pontual, no Dia dos Namorados, em parceria com o aplicativo Rappi (R$ 190, com entrada e a Lasagna alla Norma, de frutos do mar, como principal). Diante do sucesso, Casesse planeja novas edições.

O restaurante de cozinha italiana Gero, de Rogério Fasano, que há 18 anos fincou bandeira em Ipanema, também nunca tinha feito entregas. Mas logo no início da pandemia, criou um cardápio selecionado com rigor pelo chef Luigi Moressa para entrar nesse mercado.

— Tivemos que escolher pratos que “viajam” bem, chegam perfeitos na casa do cliente — conta Fasano.

O empresário mantém iliais do Gero no Leblon e Barra para distribuir as embalagens de papelão reciclável por meio de entregadores em scooters elétricas supercharmosas.

— Como deu certo, a ideia é que, mesmo após a reabertura, estes pratos continuem sendo oferecidos por delivery.

A scooter para entregas do Gero Foto: Divulgação
A scooter para entregas do Gero Foto: Divulgação

'Dark kitchen'

Thomás Troisgros, sempre com o pai Claude Troisgros e seu fiel parceiro Batista, não só partiu para a entrega em um dos restaurantes do grupo, o CT Brasserie, como ainda aproveitou a espaçosa cozinha de outro, o Le Blond, para tocar uma nova empreitada: um delivery de pratos simples, descomplicados e baratos, chamado Do Batista.

Com menos de um mês de vida, virou um dos sucessos da quarentena. E, pelo andar das quentinhas, vai ganhar um espaço físico após a pandemia.

O restaurante da nova marca deve abrir num shopping da Zona Norte do Rio quando os tempos normalizarem, mas o delivery seguirá funcionando.

“Vamos ter menos clientes para atender, menos pessoas trabalhando. A solução está na casa das pessoas”

Felipe Bronze
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— O que era apenas um serviço extra do restaurante, virou parte da operação. E vai ser assim daqui para frente. O delivery se estabeleceu — diz Thomás, que prefere encarar o atual momento como de renovação e amadurecimento de projetos.

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O empresário também criou a Três Gordos, uma hamburgueria virtual, sem salão, mesa ou clientes presentes. Só faz entrega. É o modelo de cozinha em alta chamado de dark kitchen.

— As quentinhas, de culinárias distintas, saem de uma mesma cozinha. Isso não é reinvenção. É renovação, evolução. São os novos tempos... — filosofa Thomás.

Valor no simples

Pedro de Artagão, que comanda casas como Irajá, Formidable, Cozinha Artagão e o quiosque Azur, também buscou a simplicidade. A Oficina do Estrogonofe que ele criou se tornou uma bem sucedida operação só com esse clássico prato de carne, com 300 pedidos por dia.

O chef Pedro de Artagão criou a Oficina do Estrogonofe para delivery Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo
O chef Pedro de Artagão criou a Oficina do Estrogonofe para delivery Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

— Sempre pensei em ter algo só com estrogonofe, feito como manda o figurino, que é, desde sempre, um dos pratos mais pedidos dos meus restaurantes. Parado, precisava agitar o meu caixa. Foi aí que coloquei em prática esse projeto com o uso de duas das minhas cozinhas — conta o chef.

Artagão está conseguindo cobrir o salário dos funcionários com o serviço e enfatiza que vai mantê-lo como um dos negócios do seu grupo após a pandemia.

O estrogonofe viaja, com acompanhamentos, num plástico fechado a vácuo. Um achado. Ainda que pouco ecológico, o advento, muito usado para armazenar ingredientes nas cozinhas, foi o grande propulsor dessa versão de delivery mais requintada.

Com a técnica, tudo “viaja bem”, de salada verde a feijoada, incluindo o Dry Martini ou outros drinques. Sem turbulências.

Aconchego a vácuo

O brasileiríssimo Aconchego Carioca, de Kátia Barbosa, fechou suas três unidades, mas também foi para o lar do cliente. Passou a operar um delivery próprio no Aconchego da Praça da Bandeira e evoluiu para o Katia Barbosa em Casa, também adepto da embalagem a vácuo.

Katia Barbosa Promoday Mestre do Sabor Foto: Victor Pollak / Victor Pollak
Katia Barbosa Promoday Mestre do Sabor Foto: Victor Pollak / Victor Pollak

— É uma nova realidade, tivemos que nos adaptar. No meio do caminho, as operações do Leme e do Leblon se tornaram inviáveis, e fechamos. Montamos um delivery de receitas com alguns pratos que marcaram a minha história, como o Bobó de Camarão e o Baião de Dois — conta a chef.

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Katia também manda entregar receitas do Kalango, pequeno restaurante que mantinha na Praça da Bandeira e que deixou de ter endereço físico após a crise. Foi incorporado pela nova marca de delivery. A chef ainda criou um canal de venda de doces de mulheres entrando no mercado:

— Esse projeto eu chamo de Panelinha da Katita, e tem de tudo, bolos artesanais, compotas, pudins, sobremesas cheias de brasilidades. Foi preciso ser criativa e adaptar os negócios ao atual momento”.

Outra reviravolta “do jeito que deu” é a da rede de restaurantes La Cevicheria, que está pela Zona Sul com cervejas e ceviches e lançou o La Carioca Suprimento, um delivery onde disponibiliza os insumos usados na casa para seus clientes.

Vai de hortifrutis, toda a sorte deles, e mais pescados e carnes, que chegam lavados, descascados, higienizados e, no caso das carnes, já cortados e embalados advinha como? No vácuo. Surgiu na pandemia, quando resolveram aproveitar a expertise em escolher insumos para compartilhar

E a Casa Julita de Serpa, famosa pelos chás das cinco que serve, conseguiu levar o serviço de petit fours, bolinhos, toda a sorte de sanduiches e pâtisserie finíssima, à casa dos cleintes. Você pede e chega pontualmente às cinco da tarde.

Revelações

O momento tem revelado ainda novos nomes, como o de Thiago Rossetti, formado no Le Cordon Bleu londrino, que correu mundo, viveu na Ásia e que há dois meses abriu o Mar Mita, uma cozinha virtual especializada em pratos asiáticos feitos com técnica européia: pratos indianos, tailandeses, chineses. Um achado.

Malu Mello é outro nome que apareceu no mercado. A chef nasceu em Paty do Alferes (RJ), numa fazenda de onde chegam todos os ingredientes que usa na sua cozinha.

Malu não tem restaurante fechado, mas também ficou com atividades prejudicadas. Ela trabalhava com catering , assinando grandes eventos. Com a pandemia, migrou para o delivery. Hoje, suas criações simples e bem executados podem ser desfrutadas em casa.

São tempos de reinvenção e de renovação na gastronomia carioca, tudo junto e misturado. É o novo de hoje. E, tudo indica, do amanhã também.

*Crítica de restaurante e colunista do GLOBO