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Economia

Saída para o comércio agora é produzir tudo para entregar direto em casa

Restaurantes se adaptam ao delivery para tentar sobreviver; supermercados e farmácias veem demanda crescer
A Amazon anunciou que vai contratar cem mil trabalhadores nos EUA, para dar conta das entregas Foto: PHILIPPE LOPEZ / AFP
A Amazon anunciou que vai contratar cem mil trabalhadores nos EUA, para dar conta das entregas Foto: PHILIPPE LOPEZ / AFP

RIO E SÃO PAULO — Os donos do Cru Natural Wine Bar, em Botafogo, sempre acreditaram que um bar de vinhos só fazia sentido com clientes ao redor das mesas e taças nas mãos. Por isso, nunca atenderam a pedidos em domicílio — até a semana passada. Com a rápida escalada do coronavírus no Rio, os proprietários tiveram apenas 24 horas para se render, por razão de sobrevivência, a um modelo de negócios mais adequado a fast foods do que a Malbecs e Sauvignons Blancs.

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Agora, o salão só fica aberto a pedidos para viagem, e o principal meio de vendas é um motoboy contratado às pressas. O cardápio de rótulos, queijos e pães migrou para o Instagram, e as encomendas chegam via WhatsApp ou telefone. Para atrair a clientela, o Cru não cobra taxa de entrega.

— Não fazíamos delivery por causa do conceito da casa, que montamos como um ambiente acolhedor. Mas a situação nos forçou a repensar isso. O faturamento é pequeno, uns 30% do que no passado. Queremos pelo menos vender o estoque para pagar funcionários e fornecedores. Mas, sinceramente, não sei se vamos resistir — lamenta o sócio Dominic Parry, inglês que mora no Rio há nove anos.

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Pesquisa da Kantar feita entre segunda e quinta-feira passadas mostra que 67% dos brasileiros deixaram de ir a restaurantes e lanchonetes por causa da doença. A adesão ao delivery e ao comércio eletrônico é, então, uma das medidas de contenção de danos tomadas por negócios de vários setores diante da quarentena generalizada.

Impedidas de circular pelas ruas nas principais cidades do país, as pessoas estão consumindo em casa. O GPA, dono das marcas Pão de Açúcar, Extra e Assaí, informou nos últimos dias que a demanda cresceu 2,5 vezes em sua divisão on-line, que está atingindo o limite da capacidade operacional.

O aplicativo Controle na Mão, voltado para a administração de restaurantes, calcula um aumento de 12% no delivery nos primeiros dias de quarentena.

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Dados da Ebit/Nielsen mostram que, em fevereiro, quando o coronavírus ainda não havia se espalhado pelo país, as vendas on-line de gel antisséptico cresceram quatro vezes na comparação com janeiro. A compra on-line de alimentos enlatados e conservas subiu 10%, movimentando R$ 1,5 milhão em fevereiro. Segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), desde a semana terminada no dia 13, alguns e-commerces venderam até 180% mais em alimentos, bebidas e saúde.

Na rede de farmácias Ultrafarma, cujo negócio depende sobretudo de compras via site, o faturamento subiu 30% em uma semana, e o prazo de entrega teve que ser dilatado em um dia. No aplicativo de entregas Rappi, o número de pedidos na primeira quinzena de março triplicou na comparação com as duas semanas anteriores.

“Diante do aumento de demanda pelo delivery, fechamos uma parceria com o SindRio e com Abrasel-RJ, com taxas e prazo de pagamento menores para apoiar os estabelecimentos associados”, disse o app, em nota, sobre sua operação no Rio.

Pagamento sem dinheiro

André Chaves, da Bain & Company, lembra que a epidemia está acelerando uma tendência de modelos de entrega que já estava aquecida. Com desemprego elevado, as condições macroeconômicas permitem uma expansão rápida dos serviços de delivery, que também são rapidamente ajustados pelo preço. Mas ele teme que, durante uma pandemia, as condições não sejam as ideais, sobretudo nos setores mais críticos.

— Existe o risco de as pessoas não experimentarem os serviços nas condições normais, por um pico de demanda que ninguém estava preparado para receber. Por isso, em setores críticos, como farmácia e restaurante, não é óbvio que isso vai “pegar” no pós-crise — pondera.

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De qualquer forma, o delivery e o comércio eletrônico estimulam uma tendência que, segundo a consultoria eMarketer, deve se tornar um legado positivo da quarentena: a popularização de meios de pagamento sem dinheiro, preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) diante da pandemia.

O impacto do coronavírus no comércio eletrônico e no delivery é global. A Amazon anunciou que vai contratar cem mil trabalhadores nos EUA para dar conta do aumento nas vendas. A empresa de Jeff Bezos também disse que vai gastar mais de US$ 350 milhões para aumentar salários.

A mudança de hábitos forçada tem feito com que, diante dos tombos das Bolsas, os investidores procurem papéis que se favoreçam da situação. Listas de empresas com essas características já vêm sendo apelidadas de “Stay Home Index”, ou índice da quarentena, e incluem firmas como Netflix, Amazon, Activision Blizzard (videogames), Peloton (equipamentos de ginástica domésticos com conteúdo virtual) e até as sopas Campbell.

Serviços de Telemedicina

Na China, na Europa e nos EUA, a pandemia do coronavírus também fez que a demanda por serviços de telemedicina desse um salto — e já há registros de problemas nas plataformas diante da procura. Segundo os especialistas, a modalidade pode ser uma alternativa para ganhos de escala nos tratamentos, sobretudo em situações de deslocamento difícil. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) liberou o uso da telemedicina, mas em caráter excepcional e apenas durante a pandemia.

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O uso de ferramentas de atendimento remoto ainda enfrenta forte resistência da classe médica no país. Críticos temem que a telemedicina se torne um dificultador ao acesso presencial.

— Se você pode facilitar em uma emergência, porque não permitir o tempo todo? — questiona Cláudio Lottenberg, presidente do Conselho de Administração do Hospital Albert Einstein e ex-presidente da United Health no Brasil. — Há uma dificuldade da classe médica em entender que a telemedicina democratiza o acesso da população aos serviços de saúde. Você reduz os custos. Em vez de a pessoa ir para o pronto socorro, o atendimento remoto faz a triagem e encaminha a pessoa para o especialista adequado, reduzindo a demanda por uma série de exames.

O Brasil é dos poucos países onde a telemedicina segue proibida, diz Lottenberg.

— Os EUA regulamentaram em 1996; a Inglaterra aprovou em 1998; e Angola, em 2012. Só o Brasil que ainda está discutindo. Mas caminhamos para a irreversibilidade desse tipo de tecnologia. As pessoas vão ver que é bom e vão gritar mais alto.