Economia

Senado aprova projeto que permite venda de até um quarto das terras de municípios a estrangeiros

Proposta ainda será votada na Câmara. Para especialistas, medida pode provocar especulação imobiliária, mas também ajuda a dar segurança jurídica a investimentos
Presidente do Senado, Davi Alcolumbre Foto: Marcos Brandão / Presidência do Senado
Presidente do Senado, Davi Alcolumbre Foto: Marcos Brandão / Presidência do Senado

BRASÍLIA — O Senado aprovou, em votação simbólica na sessão que terminou na madrugada de ontem, um projeto que facilita a aquisição e o arrendamento de terras no Brasil por estrangeiros.

De acordo com o texto, que ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados, a área comprada por pessoa física ou jurídica do exterior poderá chegar a até 25% da área total do município onde estiver localizada.

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Especialistas ouvidos pelo GLOBO dizem que o projeto pode reduzir a insegurança jurídica para investimentos de empresas estrangeiras no país, mas também apontam risco de especulação imobiliária, que poderia elevar preços de terras no Brasil.

A proposta para a venda de terras para estrangeiros estabelece que o Conselho de Defesa Nacional (CDN) terá de aprovar a compra que ocorrer por organização não-governamental (ONG), caso a propriedade em questão estiver em região de fronteira com outros países ou no bioma amazônico.

A venda também precisará de aval do Conselho se os compradores forem fundos soberanos, fundações e outras empresas com sede no exterior.

A mesma regra se aplica quando os interessados na aquisição de terras forem empresas brasileiras constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas, físicas ou jurídicas, estrangeiras, quando o imóvel rural se situar no Bioma Amazônia e que 80% ou mais da sua área correspondam a uma reserva legal.

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Segundo a Agência Senado, ficam vedados a estrangeiros qualquer modalidade de posse por tempo indeterminado, arrendamento ou subarrendamento parcial ou total por tempo indeterminado e habilitação à concessão de florestas públicas destinadas à produção sustentável.

Essa concessão, no entanto, é permitida para empresas brasileiras constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoa física ou jurídica estrangeira.

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O veto aos estrangeiros não se aplica se a área rural for usada para concessões de serviços públicos, como geração de energia.

O que pensam os especialistas

Sérgio Sauer, doutor em Sociologia e professor da Universidade de Brasília (UnB), avalia que o projeto é uma ameaça à soberania, pois libera investimentos em terras tanto para pessoas físicas quanto para empresas estrangeiras. Ele chama a atenção para o risco de a medida provocar elevação de preços de propriedades no Brasil.

— É falacioso dizer que o projeto significa mais empregos e mais alimentos, pois não estabelece qualquer condição ou condicionante, como a de que os investimentos devem ser produtivos. Muitos investimentos podem ser especulativos, gerando especulação imobiliária — explicou Sauer, estudioso da questão fundiária no Brasil.

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O professor ressalta ainda que essa possível pressão no preço das terras deve deve trazer perdas para o agronegócio:

— Os preços das terras tendem a aumentar, já que haverá mais competição entre grandes empresas comprando terras. A tendência é encarecer a produção — afirmou. — Desde 2010, estudo e tenho me posicionado contrário a essa liberação, não vejo pontos positivos.

Sauer, que é defensor de políticas de redistribuição de terras no Brasil, observa ainda que uns dos artigos do projeto ressalta que os imóveis rurais adquiridos por sociedades estrangeiras no país devem obedecer aos princípios da função social das propriedades rurais.

Para o especialista, a função social da terra, no sentido de segurança alimentar, não é um princípio cumprido nem pelos atuais proprietários de terra brasileiros no modelo de grandes propriedades produtoras de commodities .

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Por outro lado, Tiago Figueiró, sócio da área de energia da Veirano Advogados, acredita que a mudança na lei vai aumentar a segurança jurídica e atrair mais investimentos não apenas no campo, mas também em áreas de infraestrutura como energia e saneamento.

— Essa mudança já era aguardada pelo mercado. E isso traz mais segurança jurídica para as empresas estrangeiras investirem em terras no Brasil — disse Figueiró. — Hoje, as empresas precisam recorrer a diversas alternativas que exigem tempo e dinheiro, como em muitas cidades nas quais as prefeituras, para receber investimento, alteram a denominação da terra de rural para urbana.

O advogado Rapahel Moreira Espírito Santo, especializado na área imobiliária, observa que o projeto do Senado mantém regras como a necessidade de aval prévio do Conselho de Defesa Nacional (CDN) para a compra de terras rurais por ONGs estrangeiras, caso a propriedade em questão esteja em região de fronteira com outros países, e por fundos soberanos, o que poderia reduzir o efeito sobre a especulação imobiliária.

— Essa atualização na lei traz mais facilidade para os investimentos, mas mantém algumas regras para diversos casos. Um exemplo são as restrições para fundos soberanos, que são hoje um dos principais investidores mundo afora.

Ameaça a segurança alimentar, diz oposição

Controversa, a matéria foi aprovada rapidamente graças a uma articulação entre o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o governo. Antes, membros da oposição tentaram impedir a votação, sem sucesso. O PT apresentou pedido para a retirada de pauta do texto e acabou derrotado por 35 votos a 20.

O texto foi votado sob protesto de alguns parlamentares. A Casa também aprovou outras matérias polêmicas, como a que muda o modelo de concorrência no transporte rodoviário.

Para o líder do PT, senador Rogerio Carvalho, o projeto sobre a venda de terras a estrangeiros põe em risco a segurança alimentar e a produção de alimentos, além de levar ao aumento no preço de terras no Brasil.

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Já o autor do projeto, o senador Irajá (PSD-TO) ressaltou que a proposta aguardava votação há 11 anos e que, durante esse tempo, o país teria perdido R$ 550 bilhões em investimentos no setor agropecuário.

Os senadores também aprovaram outro projeto considerado polêmico que aumenta as exigências para o transporte terrestre coletivo interestadual no Brasil. O texto foi incluído na pauta de última hora como item "extrapauta" atendendo a um pedido do líder do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE).

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Caso seja validada na Câmara, a matéria estipula que as novas linhas de transporte rodoviário terão de seguir critérios como a comprovação de capital social de pelo menos R$ 2 milhões.

'Passada a boiada'

O ritmo das votações na sessão do ano no Senado desagradou a alguns parlamentares. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) disse que Alcolumbre e o governo estavam "tratorando" as votações. Em referência a uma fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, Contarato afirmou que "está sendo passada a boiada literalmente".

— Nós não podemos conceber o que foi feito hoje. Hoje, o Senado permitiu a internacionalização da Amazônia. Hoje, foi dito "não" às empresas de pequeno porte de transporte — disse o senador Fabiano Contarato.— O que nós estamos fazendo aqui? Nós simplesmente estamos aqui chancelando, dando coro a essa votação de que hoje eu sinto vergonha.

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O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) chegou a reclamar que algumas matérias não deveriam ser colocadas em votação durante uma sessão esvaziada, citando como exemplo o projeto do transporte interestadual:

— Esta votação é uma votação polêmica, que eu acredito que vai deixar muitos colegas aqui se sentindo, até certo ponto, traídos, porque são pautas importantes. Eu posso até concordar, presidente, com todo respeito, que seja colocado numa próxima. Até amanhã, se o senhor marcar, a gente está à disposição. Pelo menos o do transporte, porque já houve um debate maior. Mas eu não acredito que a gente possa fazer isso numa sessão esvaziada — argumentou.

* Com informações da Agência Senado