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Economia Energia

Sistema no limite eleva risco de apagão, e governo fará racionamento em órgãos públicos

Para especialistas, há risco de faltar energia no fim do ano nos horários de pico. ONS diz que país precisa ampliar oferta em volume superior ao que Itaipu gera hoje
Lago da hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais, que chegou a 18% de sua capacidade Foto: Joel Silva/ Agência O Globo
Lago da hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais, que chegou a 18% de sua capacidade Foto: Joel Silva/ Agência O Globo

BRASÍLIA, RIO E SÃO PAULO - Dois meses depois de o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, minimizar os riscos de um racionamento de energia no país num pronunciamento em cadeia nacional, o presidente Jair Bolsonaro assinou ontem um decreto determinando o primeiro corte obrigatório no consumo de eletricidade no país.

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Órgãos públicos federais serão obrigados a reduzir uso de energia entre 10% e 20% . No fim do dia, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) deu novo alerta que mostra a gravidade da situação: em nota técnica disse que é necessário aumentar a oferta de energia em 5,5 GWmed para garantir o suprimento de eletricidade a partir de setembro de 2021.

Para se ter ideia do que isso significa, nesta terça-feira o país consumiu cerca de 73 GWmed de energia. Ou seja, será necessário tomar medidas para garantir um adicional de cerca de 7% de energia.

Isso é mais do que a hidrelétrica de Itaipu, a maior do país, tem gerado todos os dias (pouco mais de 4 GW). A usina está com o nível baixo no seu reservatório e tem gerado o menor volume de energia em décadas

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Diante desse cenário, o governo vem anunciando medidas para tentar evitar o pior. Mas especialistas avaliam que essas ações aumentarão o risco de interrupções no fornecimento de energia neste segundo semestre, com risco de apagões.

Redução de vazão

Entre elas estão a redução na vazão das hidrelétricas — que, na terça-feira, foi estendida às usinas do Nordeste —, a flexibilização nas margens de segurança na transmissão de energia e os incentivos à indústria para a redução do consumo de energia nos horários de pico .

Na quarta, o ministro de Minas e Energia afirmou que o governo ainda vai estabelecer em setembro metas de redução do consumo para clientes residenciais e pequenos empreendimentos em troca de bônus, mas sem obrigatoriedade.

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— O Brasil está operando no limite. O governo está oferecendo um prêmio para a indústria reduzir seu consumo no momento de pico, que é onde há problema e preocupação. Esse risco de apagão é a porta de entrada para o racionamento — afirma Roberto D'Araújo, diretor do Instituto Ilumina.

O nível dos reservatórios do centro-sul do país já estão em níveis mais baixos que os que levaram à crise que levou ao racionamento de energia em 2001. O governo se viu obrigado a adotar medidas que, na prática, deixam o país mais vulnerável a blecautes nos horários de maior demanda, segundo D’Araújo.

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Ele cita ainda as mudanças na regras de segurança das linhas de transmissão, autorizadas sem alarde pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) para incrementar em cerca de 30% a capacidade de transferência de energia do Norte e principalmente do Nordeste para Sudeste e Centro-Oeste:

— As linhas de transmissão contam com uma segunda linha de redundância, caso haja problema com a primeira. Agora, as duas são usadas. Isso agrava a possibilidade de apagão.

20% da capacidade

Para o especialista, o plano do governo de reduzir a vazão das hidrelétricas do Nordeste para estocar mais água e aumentar a geração e o envio para o centro-sul na fase mais crítica da seca pode ser arriscada.

Ele lembra que os lagos nordestinos representam apenas 20% da capacidade de armazenamento no país e são importantes para a segurança energética da região

No momento, a boa “safra de ventos” tem favorecido a geração eólica e há crescimento da fonte solar, ma, segundo D’Araújo, as fontes renováveis não conseguem “segurar” em tempo real picos de demanda.

Ele adverte ainda que o nível dos reservatórios no Nordeste também pode sofrer com estiagem até o fim do ano:

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— O Nordeste não tem como mandar mais nada de energia, pois a altura dos reservatórios das hidrelétricas na região pode baixar para um nível perigoso. Com menos altura, as usinas precisam consumir mais água para aumentar a produção de energia, agravando ainda mais a situação. E, ao fazer muita força para puxar água, pode haver danos no aço das turbinas — disse D'Araújo.

Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), do Instituto de Economia da UFRJ, também vê risco de faltar energia no fim do ano para atender à demanda no horário de pico.

Apagão de curta duração

Para ele, a estratégia de segurar água nos reservatórios do Nordeste pode ajudar nos meses críticos, mas o afrouxamento da margem de segurança para transmitir a energia para o centro-sul eleva a probabilidade de cortes inesperados:

— Aí há um risco de apagão de curta duração. Em 2021 o risco é de cortes de curtíssima duração.

Gustavo Carvalho, gerente de Preços e Estudos de Mercado da consultoria Thymus, concorda que a estratégia do governo aumenta as chances de blecaute para “cobrir demanda pontual de demanda”. Segundo ele, apesar de o país ter uma grande capacidade de geração energia, o desafio atual está na disponibilidade:

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— Se houver uma alta forte na demanda, as hidrelétricas são as que respondem mais rápido, o que não ocorre com as outras fontes, renováveis e térmicas. A situação é crítica. Estamos operando no limite e adotando medidas conjunturais que são fundamentais nesse momento, pois, caso contrário, estaríamos em um racionamento iminente.

Carvalho observa que o nível médio dos reservatórios está atualmente em cerca de 35%, bem abaixo da média de 80% dos últimos anos nesta época do ano. A previsão é que, em dezembro, o nível chegue a 16%, numa situação mais grave que de 2001.

— Vamos depender do volume de chuvas no período úmido (verão) para saber se vamos ter racionamento ou não. Temos ainda o fenômeno La Niña, que pode atrasar o início do período de chuvas — afirmou o especialista, lembrando que a recuperação da economia, previsão de crescimento acima dos 5% este ano, tende a aumentar ainda mais o consumo de energia e ampliar o desafio do governo.

Guedes: Nuvem no horizonte

Na quarta-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, citou a crise hídrica como uma “nuvem no horizonte”, mas voltou a minimizar o impacto sobre a atividade econômica:

— Estou muito confiante que nós vamos atravessar. Se, no ano passado, que era o caos, nós nos organizamos e atravessamos, porque vamos ter medo agora? Quer dizer, qual é o problema agora? Que a energia vai ficar um pouco mais cara porque choveu menos? Ou o problema é que está tendo uma exacerbação porque anteciparam as eleições? Tudo bem, vamos tapar os ouvidos e vamos atravessar.

O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afastou mais uma vez a “hipótese de racionamento”.

O presidente do Conselho de Administração da BRF, Pedro Parente, que coordenou a gestão da crise que levou a um racionamento em 2001 como ministro de Fernando Henrique Cardoso, avaliou, em um evento, que provavelmente será necessária a redução do consumo de energia no país.

Ao falar de sua experiência, defendeu como fundamentais foco, planejamento e transparência do governo sobre a evolução dos cenários.

— Tem que deixar clara a situação. É fundamental a comunicação e a transparência. As autoridades e os políticos não podem achar que sua audiência não é inteligente — afirmou o executivo no Expert XP. — Dependíamos da natureza e isso é aleatório. Tudo pode acontecer.