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Depois do voo de Bezos, o que esperar da nova era do turismo espacial? Engenheiro espacial responde

Em entrevista ao GLOBO, especialista explica como voo do bilionário ao espaço marca o início de uma nova fase da indústria do turismo espacial
Foguete New Shepard decola levando Jeff Bezos e outros três tripulantes civis ao espaço Foto: JOE RAEDLE / AFP
Foguete New Shepard decola levando Jeff Bezos e outros três tripulantes civis ao espaço Foto: JOE RAEDLE / AFP

RIO - Se viajar ao espaço parecia algo impossível de estar ao alcance de civis, agora o turismo espacial estelar tem um caminho para se tornar um novo tipo de entretenimento ao redor do globo - pelo menos para os mais ricos, no curto prazo

Para o engenheiro espacial Lucas Fonseca, que já teve um experimento brasileiro levado à Estação Espacial Internacional (ISS) pela SpaceX, o voo bem sucedido do foguete do bilionário Jeff Bezos nesta terça-feira marca o início de uma nova fase do setor espacial.

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É a primeira vez que um foguete suborbital leva ao espaço um tripulante cujo assento foi comercializado, observa o pesquisador citando que as empresas espaciais de Elon Musk e de Richard Branson ainda não fizeram isso na prática.

Viagem da Blue Origin durou 10 minutos e 18 segundos. No voo, o bilionário Jeff Bezos levou o irmão Mark, a pioneira espacial Wally Funk, de 82 anos, e Oliver Daemen, de 18 anos
Viagem da Blue Origin durou 10 minutos e 18 segundos. No voo, o bilionário Jeff Bezos levou o irmão Mark, a pioneira espacial Wally Funk, de 82 anos, e Oliver Daemen, de 18 anos

Em entrevista ao GLOBO, Fonseca avalia que, no futuro, mais civis poderão conhecer o espaço, tanto em voos com fins de entretenimento quanto educacionais.

Atualmente, três bilionários - Elon Musk, Richard Branson e Jeff Bezos - concorrem pela exploração do espaço, por meio de experimentos em suas empresas privadas voltadas ao setor. Na semana passada, Branson se tornou o primeiro dos três a viajar ao espaço .

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Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Há uma corrida espacial entre os três bilionários: Bezos, Musk e Branson. Qual o diferencial do voo de Bezos hoje em relação aos demais?

As três companhias dos três bilionários começaram mais ou menos na mesma época. A primeira foi a do Jeff Bezos, dois anos antes da SpaceX de Musk, mas hoje em dia a SpaceX está alguns bons passos à frente dos outros. Ela já leva astronautas na estação espacial internacional. Para isso ocorrer, você tem que colocar uma nave em órbita, o que é diferente dos voos que Branson e Bezos estão se propondo por ora.

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A ideia deles (Branson e Bezos) é fazer um voo suborbital: a nave vai bem alto, chega perto dos 100km, mas não tem energia suficiente para ficar em órbita, então ela cai de volta em direção à Terra.

A principal ideia de fazer esse voo suborbital é porque ele já permite a sensação de ver a curvatura da Terra, o escurecimento do céu, e já é o suficiente para agradar muitas pessoas. O tíquete sai bem mais barato.

Estamos falando de um tíquete na casa dos US$ 250 a 300 mil dólares, frente aos US$ 4 milhões a US$ 5 milhões para voar ao espaço no foguete do Elon Musk.

Mesmo assim, esse voo do Jeff Bezos vai um pouco mais alto do que o do Branson, e é uma das coisas que ele está defendendo. Ele também argumenta que o voo é o que mais proxima de um voo tradicional de um astronauta, pois é o mais próximo a ir para o espaço e ficar em órbita. Além disso, tem umas janelas maiores na cápsula dele. Ele diz que a experiência do cliente é mais interessante do que o voo no avião do Branson.

Quais oportunidades esse tipo de exploração espacial abre?

Esses voos, que chamamos de turismo espacial, têm vários propósitos. Tem o de entretenimento, mas também pode ter o de educação, por exemplo. Você pode levar estudantes e professores para demonstrarem algo durante o voo.

E durante esses três ou quatro minutos de queda livre, as pessoas podem fazer alguns experimentos no que chamamos de microgravidade. Existem vários experimentos de química, física e biologia que podem ser feitos durante essa queda, então também tem um lado científico nesse tipo de voo.

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Nesse voo de hoje do Jeff Bezos não tem nenhum cientista fazendo experimento, mas é a primeira vez em que acontece uma coisa diferente.

É a primeira vez dentro desse tipo de voo que tem um assento que foi comprado. Nem Musk nem Branson tiveram isso. No voo do Branson, todos eram funcionários da Virgin Galactic. Já no do Bezos, houve três pessoas que não são funcionários da Blue Origin.

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Wally Funk e Oliver Daemen são pessoas externas e isso caracteriza a primeira comercialização do espaço. Isso com certeza vai abrir novos precedentes, e a ideia é que esse tíquete se torne cada vez mais baixo, com um acesso mais democrático para a população como um todo.

Hoje, para voar pela Virgin Galactic de Branson, um tíquete está na casa dos US$ 250 ou US$ 300 mil. O assento no voo do Bezos saiu mais caro, mas porque teve um leilão e acabou sendo arrematado por um valor bem mais alto. Mas a ideia é que a longo prazo esses valores caiam até que fiquem próximos ao de um voo de avião comercial.

Isso abre para o futuro uma possibilidade de democratização maior, de participação pública em atividades espaciais.

A partir do sucesso de dois voos comerciais ao espaço (de Branson e Bezos), que outras tecnologias ou segmentos vão ganhar o espaço com esse avanço?

Existem várias frentes de atividades econômicas ligadas ao espaço hoje em dia. Essa que estamos vendo é a do turismo espacial que se volta para a ideia do entretenimento, de conseguir levar mais pessoas ao espaço para poderem contemplar a Terra.

Mas todos esses desafios tecnológicos que estão sendo vencidos em prol do entretenimento vão ser utilizados para outros fins, e a área espacial vai além disso.

Temos satélites sendo colocados em órbita com preços cada vez mais baixos, e isso possibilita prover internet de maneira mais ampla para o mundo, além de tirar fotos de locais do planeta com uma repetição maior, identificar um deslizamento ou derramamento de petróleo, fazer previsão climática, estudar o aquecimento global.

Tudo isso de certa forma é impactado por essas tecnologias que visam a satisfazer o entretenimento.

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Na área médica e farmacêutica, a Estação Espacial Internacional (ISS), que é nosso laboratório permanente em órbita, tem boa parte das suas atividades internas resultando em novos fármacos.

O Tamiflu, por exemplo, principal agente no combate da (gripe) H1N1, teve parte desenvolvida no espaço. O principal remédio de osteoporose usado hoje em dia foi desenvolvido no espaço, assim como remédios para câncer que também foram desenvolvidos lá.

Então a quantidade de saídas que você tem de atividades espaciais é grande e às vezes algo simples como um bilionário investir numa tecnologia para levar turistas para o espaço impacta positivamente muitas outras atividades já existentes.

Uma iniciativa brasileira, da qual faço parte, vai mandar proteínas de Covid-19 para o espaço em dezembro. As proteínas são fundamentais para entender como funcionam as doenças e como elas se conectam no corpo e, quando passam pelo processo de cristalização, conseguimos enxergá-la de fora mais pura no espaço já que não tem a gravidade atrapalhando.

A Virgin Galactic já vendeu cerca de 600 bilhetes voltados ao turismo espacial, e os vaçpres anunciados são bem elevados. Quando vamos ver esses pagantes indo ao espaço e quanto tempo deve levar para que o restante da população, sem essa mesma condição financeira, possa ir também?

O Branson não tem uma expectativa clara de quando o primeiro pagante vai de fato voar. Inclusive há brasileiros na fila e estão todos na expectativa. Mas acho que em um prazo de dez anos os preços vão cair ao ponto de ser três vezes o preço de um tíquete de aviação.

Elon Musk está mandando astronautas para Estação Espacial Internacional (ISS), algo muito acima do que o Bezos e Branson estão fazendo.

Ele está criando um veículo novo, o StarShip, e está prometendo que cada kg na nave vai custar US$ 10. Ou seja, se você pesa 60 kg, você poderia voar para o espaço por US$ 600 dólares, e não seria nem o voo suborbital. É muito em conta comparado com os US$ 20 milhões (R$ 103 mi) divulgados hoje em dia.

Por enquanto os voos que a Virgin Galactic pretende realizar, por exemplo, são suborbitais. Devemos ficar nesse tipo de passeio? Será que os pagantes não vão querer ir mais longe?

Na hora em que se reduzir o preço do voo orbital o suficiente para encarar o preço do suborbital, não vai fazer sentido ir no suborbital para ficar três minutos em microgravidade. O cara vai querer passar uma semana num hotel no espaço.

Inclusive, a Nasa selecionou a start-up Axiom Space para construir um módulo privado para virar um hotel na Estação Espacial Internacional (ISS), para que turistas possam contemplar o espaço a partir da Estação Espacial, o que é muito mais legal.

Eles planejam mandar os primeiros turistas em setembro, mas pagaram para a SpaceX levá-los até o espaço, já que o "módulo hotel" ainda não foi construído. Mesmo assim, os turistas já vão passar um tempo lá.

Esse tipo de voo da Blue Origin poderia também ajudar na execução de voos intercontinentais mais rápidos, nessa modalidade suborbital?

Sim. O Elon Musk está desenvolvendo a StarShip, que é o veículo que, se se concretizar, será o maior da história.

A StarShip está próxima de fazer testes finais e voar nos próximos anos. Uma das suas configurações é um veículo suborbital que vai viajar de Nova York até Tóquio em menos de quatro horas.

Seria algo incrível,  mas, por ora, a única coisa que a empresa vem desenvolvendo é onde decolar e pousar isso. Por isso, o Musk vem comprando plataformas de petróleo desativadas para transformá-las em bases de lançamento e pouso.

Esse pessoal não dá nó em lugar errado. Eles estão pensando em tudo isso, então toda essa parte de transporte entre cidades está sendo contemplada.

Não consigo prever que isso não vá ocorrer. O difícil é fazer o exercício do quando, mas talvez eu diria que em dez anos isso seja possível.

Estamos falando das possibilidades de avanço da indústria espacial, mas o lançamento de foguetes, frequentemente, emite muitos poluentes. E tudo isso em um momento em que ativistas alertam para os efeitos do aquecimento global e mudanças climáticas. Qual o impacto dessas ações sobre o meio ambiente?

Faz parte da indústria aeroespacial responder a isso da mesma forma que outras indústrias estão respondendo, seja a automotiva com os carros elétricos, seja a aeronáutica com motores com emissão de carbono.

O caso do Bezos e Branson tem uma peculiaridade. O combustível que o Branson usa de fato polui bastante, (emite) CO2. Já o do Bezos é hidrogênio líquido com oxigênio líquido. Quando você faz a queima dos dois, você gera vapor de água.

Então o combustível que ele usa não é poluente quando queimado. Mas para gerar o hidrogênio, tem que fazer um processo de eletrólise na Terra e, para isso, vai gastar energia. Se essa energia está vindo de uma queima de combustíveis fosseis, ou se vem de painel solar ou energia nuclear, isso também importa.

No fim do dia, a mensagem que Bezos passa é que ele tem um turismo espacial mais verde que o do Richard Branson e isso com certeza faz parte do marketing dele.