Zeina Latif
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Zeina Latif
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Zeina Latif

Economista


O governo pretende resgatar políticas de estímulo à indústria automobilística. Fala-se em benefícios para toda cadeia, englobando linhas de crédito, reduções tributárias e aumento do índice de nacionalização. O foco será o carro “popular”, com o objetivo de termos automóveis no valor de R$ 50 mil. É longa a lista de problemas.

Primeiramente, a política vai contra a promessa do presidente Lula de “colocar o pobre no Orçamento”. Em um país onde 70% das pessoas ganham até dois salários-mínimos, são poucos que podem ter um carro; por seu valor e pelos custos associados, como combustível, IPVA, manutenção e juros do empréstimo, que facilmente somam R$ 1.500/mês (considerando um carro de R$50 mil). Os estímulos acabarão por beneficiar os grupos entre os 10% de maior renda.

Isso vale mesmo assumindo que a política será exitosa em reduzir preços de forma relevante, o que é pouco provável. A depender do modelo de benefício tributário, não necessariamente ele será repassado a preços finais, gerando apenas maior margem de lucro das empresas. Além disso, aumentar o índice de nacionalização, como pretendido, vai na contramão da agenda de reduzir o preço de automóveis.

Há certamente outras prioridades e demandas das camadas populares, que anseiam por serviços públicos de qualidade, incluindo mobilidade, ou mesmo conectividade. O déficit habitacional está muito associado a moradias distantes das oportunidades de trabalho e de serviços públicos. A falta de transporte público, em quantidade e qualidade, representa grave falha do poder público.

A iniciativa não vai pegar bem junto à comunidade internacional. Estimular o transporte individual, e não o coletivo, é uma política que fere a agenda ambiental, mesmo sob o argumento de os carros mais modernos e flex serem menos poluidores. Ainda que o benefício fosse direcionado a carros elétricos, necessitaria de maiores estudos.

A experiência da Noruega de subsídio a carros elétricos tem sido questionada por conta dos muitos efeitos colaterais, incluindo a compra de um segundo carro por aqueles com melhores condições financeiras. A recomendação principal é desestimular o uso de carro.

A indústria automobilística já é bastante protegida. Segundo estudo do Iedi/Fiesp, com dados de 2014, os automóveis desfrutam dos mais elevados níveis de proteção efetiva à concorrência internacional — leva em conta a tarifa de importação do bem final e, também, dos insumos importados.

A proteção efetiva foi estimada em 127%, ante média simples de 26% na indústria (refere-se ao ganho de valor adicionado por conta da tarifa).

O setor é beneficiado pelo Rota 2030, do governo Temer, que inclui o fomento à inovação e um regime tributário especial para importação de autopeças sem equivalente nacional. O programa vale por 15 anos, e o primeiro ciclo se encerra em novembro de 2023. Uma avaliação cuidadosa do Rota 2030 contribuiria para o debate sobre o novo benefício pretendido.

Não parece boa ideia criar um estímulo setorial em plena discussão de reforma tributária, que pretende (corretamente) o tratamento isonômico dos setores. Muito menos diante do esforço fiscal, proposto pelo Ministério da Fazenda, baseado na redução de benefícios tributários. Qual será o custo das medidas?

Quanto à política de crédito, ela não se justifica. A taxa de juros para aquisição de veículo está em torno de 23% ao ano, ante média do crédito livre da pessoa física de 55%; a diferença é fruto das medidas, de 2005, para aperfeiçoamento das regras de execução de garantias. Há muito a se avançar, mas de forma horizontal, e não com proteção setorial.

A indústria automobilística enfrenta muitos desafios por conta da transição energética e da mudança de hábitos da sociedade. Sendo um setor muito dependente de ganhos de escala para ser competitivo, a tarefa torna-se mais complexa. O papel do governo é fomentar a inovação e promover um ambiente de negócios saudável, mas não estimular artificialmente o consumo.

O protecionismo poderá produzir mais lucros hoje, mas, adiante, resultará em menor produtividade e preços mais elevados.

O governo tem análises cuidadosas dos custos e impactos dessa proposta? Seria importante disponibilizá-las, ainda mais depois das muitas medidas fracassadas que foram pelo mesmo caminho. Com a palavra, o Ministério do Planejamento.

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