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Almodóvar critica extrema direita e defende aborto legal: 'Sou defensor da liberdade física total da mulher sobre o próprio corpo'

Diretor fala, em entrevista exclusiva, sobre o lançamento de 'Mães paralelas' e afirma: 'Desde que Trump chegou ao poder, uma explosão despertou todos esses loucos'
O cineasta espanho Pedro Almodóvar Foto: Nico Bustos
O cineasta espanho Pedro Almodóvar Foto: Nico Bustos

Pedro Almodóvar surge na telinha do computador antes do tempo. Tem uma expressão quase infantil, desconcertada, enquanto tenta prestar atenção à profusão de mãos que o ajeitam e vozes que debatem os últimos detalhes antes do início da entrevista. Não sabe que a câmera está aberta e que o observam do outro lado. Estamos na mesma cidade, mas, nestes estranhos tempos, o encontro é mediado por uma plataforma de videoconferência. Também uma plataforma digital, a Netflix, é a responsável por levar ao Brasil e a toda a América Latina “Mães paralelas”, o bonito filme que o realizador espanhol de 72 anos apresenta como uma oferenda à vida.

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Vida e morte, masculino e feminino, passado e presente permeiam a história e salpicam o papo de exatos 15 minutos, em que um dos mais conhecidos diretores de cinema do nosso tempo rapidamente desconstrói clichês associados a ele. O criador de um universo exuberante, responsável por imprimir nas mentes de meio mundo uma ideia de hispanidade coloridíssima, é um homem tímido. Fala baixo e mantém a elegância mesmo quando confrontado com as (poucas) más críticas que seu filme recebeu.

Na história, Janis (Penélope Cruz) é uma sofisticada fotógrafa que mantém algo de sua essência aldeã apesar dos muitos anos assentada em Madri. Enquanto estabelece uma intensa relação com a adolescente Ana (a nova chica Almodóvar Milena Smit, leia mais na página 18) na maternidade em que esperam, ambas, seus primeiros e não planejados bebês, empreende uma batalha pessoal: conseguir reabrir a fossa comum em que está o bisavô, um dos mais de 100 mil republicanos assassinados pelas tropas golpistas de Francisco Franco na Guerra Civil (1936-1939) e ainda enterrados sem identificação em campos, cemitérios e beiras de estradas.

Almodóvar e Penélope Cruz: primeiro filme dele em que ela autou é de 1997 Foto: Nico Bustos
Almodóvar e Penélope Cruz: primeiro filme dele em que ela autou é de 1997 Foto: Nico Bustos

Há quem tenha visto uma desconexão entre ambas histórias: a da mulher que engendra a vida e a dos homens que tentaram impor morte e esquecimento. “Não estou de acordo. Seria como reconhecer que o filme não funciona, e eu acho que funciona. Li críticas que valorizam a maneira em que, através de um personagem, do privado, falo do coletivo. Essa era a minha intenção. Esta ferida tem 85 anos mas, infelizmente, continua aberta”, diz o diretor. “Janis busca reparação histórica mas, em sua vida privada, se contradiz porque guarda um segredo, um enorme dilema moral. Vejo uma estrutura narrativa clássica: as fossas servem de prólogo e epílogo e mostram a forte vinculação da personagem feminina de Penélope com a avó que a criou.”

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Em “Mães paralelas” o tema é abordado como evidente declaração de princípios políticos. Mas não é, nem de longe, a primeira vez em que a memória tão presente da ditadura de Franco (1939-1975) marca a obra de Almodóvar. Após a morte do generalíssimo , o jovem chegado da histórica La Mancha se somou a milhares de outros que puseram em marcha a chamada Movida Madrilenha, um período de desbunde, entre o final dos anos 1970 e meados dos 1980, em que a capital espanhola se tornou um centro de hedonismo e criação artista iconoclasta.

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Seu primeiro longa, “Pepi, Luci e Bom” (1980), já protagonizado por Carmen Maura, a atriz mais fortemente vinculada ao universo almodovariano, encadeia personagens que atuam livremente em sua relação com o sexo, as drogas, o amor. Naquele momento, o artista também tinha um projeto musical punk, Almodóvar & McNamara. “Voy a ser mamá”, um dos hits da efêmera banda, é um manifesto pela liberdade de aborto com evidente crítica ao conservadorismo religioso que diz assim: “Sí, voy a ser mamá/ No quiero abortar/ Rechazo la espiral/ Tiene derecho a vivir/ Le llamaré Lucifer/ Le enseñaré a criticar/ Le enseñaré a vivir de la prostitución/ Le enseñaré a matar/ Sí, voy a ser mamá.”

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Quarenta anos depois de escrevê-la, ele volta a tocar de leve o tema do aborto no novo filme. E não deixa espaço a dúvidas: “Sou profundamente abortista. Mais que isso: defensor da liberdade física total da mulher sobre seu próprio corpo. Os homens, aliás, temos pouco a dizer a respeito”. Mulheres libertárias (“Mulheres à beira de um ataque de nervos”, “De salto alto”), pessoas do submundo das drogas e da prostituição (“Que fiz eu para merecer isto?”, “Carne trêmula”), gays, pessoas trans (“A lei do desejo”, “Má educação”, “Tudo sobre minha mãe”), escândalos nas entranhas da igreja (“Maus hábitos”). Tal é o compromisso de Almodóvar por colocar temas espinhosos sobre a mesa que o tornou persona non grata entre os conservadores da Espanha.

Cineasta rodará, no ano que vem, seu longa de estreia em inglês Foto: Nico Bustos
Cineasta rodará, no ano que vem, seu longa de estreia em inglês Foto: Nico Bustos

Há alguns anos, uma investigação jornalística internacional mostrou que o cineasta e Agustín Almodóvar, seu irmão e sócio na produtora El Deseo, estavam entre as centenas de celebridades que mantinham sociedades off-shore no Panamá e em outros paraísos fiscais. A empresa, logo se revelou, estava limpa e regularmente constituída, o que não impediu parte da imprensa conservadora do seu país de criticá-lo, celebrando sem disfarces os maus números de bilheteria de “Julieta”, filme lançado naquele período e que terminou eclipsado pelo pequeno escândalo.

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Hoje, ele crê ter sido vítima de uma campanha difamatória como tantas produzidas atualmente para atacar reputações e, no âmbito político, desestabilizar as instituições e a democracia. “É uma prática ligada a uma extrema-direita que saiu do armário. Quero ser positivo e acreditar que tudo isso não está normalizado, mas o fato é que é um discurso que está aí”, comenta o artista, que, questionado sobre a ascensão da direita radical em tantos países (Hungria, Estados Unidos, Polônia, Brasil, Áustria), sentencia: “Desde que Trump chegou ao poder, houve uma explosão mimética que despertou todos esses loucos. A lógica deles é a seguinte: ‘Eu também penso isso! Se o homem mais poderoso do mundo fala, por que não eu?’ O que há de se fazer é lutar, contradizê-los, mostrar a verdade, combater as fake news. Como sociedade, precisamos ser menos crédulos”.

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A seriedade do discurso desaparece de súbito quando se menciona Penélope Cruz. Pedro Almodóvar fala com doçura sobre essa madrilenha de 47 anos que já protagonizou sete filmes dele e que acaba de ser indicada ao Oscar de melhor atriz pelo papel de Janis. Os dois personificam a relação por vezes simbiótica entre um diretor e seu intérprete-fetiche. Em entrevista recente ao jornal The New York Times, ela afirmou que ambos literalmente leem a mente um do outro. No trabalho, tanta cumplicidade também pode ter um lado menos luminoso. “Pode chegar a ser difícil dirigir alguém tão íntimo”, ele admite. “Eu dirijo um desconhecido com menos medo de ferir alguma suscetibilidade. Com uma pessoa tão próxima, o cuidado precisa ser redobrado, porque você sabe que pode acabar ferindo-a. Mas com Penélope, felizmente, a química foi crescendo desde a primeira colaboração (em ‘Carne trêmula’, de 1997). Em cada filme, fui pedindo mais. Esta de ‘Mães paralelas’ é a personagem mais complexa que escrevi para Penélope, e ela entrega. Isso me deixa muito seguro. Aliás, ela própria me dá segurança, porque tem uma fé tão cega em mim que me torna um melhor diretor.”

O diretor espanhol de 72 anos Foto: Nico Bustos
O diretor espanhol de 72 anos Foto: Nico Bustos

Deliberadamente, prestes a completar 73 anos de vida e 45 desde que começou a registrar seus primeiros curtas em películas de 8 milímetros, o cineasta trocará a segurança por um terreno instável. Ano que vem, rodará seu longa-metragem de estreia em inglês. A primeira experiência dirigindo na língua foi em 2020, em plena primeira onda da pandemia, com o impactante curta “A voz humana”, adaptação do texto de Jean Cocteau estrelada por Tilda Swinton. Agora será Cate Blanchett quem liderará o elenco de “Manual da faxineira”, cujo roteiro, já escrito por ele, está inspirado no best-seller homônimo da americana Lucia Berlin. “Ela está entusiasmada, já demos vários passos, inclusive com reuniões semanais entre os produtores. Agora, tem uma coisa: até que não me veja no set, rodando, não digo ‘este vai ser o meu próximo filme’”, ele resume, antecipando que antes da empreitada dirigirá outro curta-metragem, seu primeiro Western, “um gênero no qual até agora eu não tinha tocado, mas que me empolga”.

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Qualquer que seja o novo projeto, uma coisa é clara: Almodóvar continuará a escrever suas histórias pensando na telona. A lógica por trás da estreia latino-americana de “Mães paralelas” na Netflix, no próximo dia 18, depois de uma passagem-relâmpago pelos cinemas, não muda sua maneira de criar, ele assegura. “As histórias que eu escrevo serão sempre para telas muito grandes. É evidente que o modo de ver ficção mudou muito, e a pandemia acelerou um processo inevitável, milhares de salas têm fechado há anos. O que eu peço, e milito por isso, é que ambos os modelos convivam”, descreve o artista sempre inovador, mas que faz questão de manter pelo menos um hábito: “Eu continuo a ir ao cinema toda semana. Pelo menos uma vez. Isso não vai desaparecer”.