Exclusivo para Assinantes
Ela Gente

Um dia antes de lançar novo livro, Nélida Piñon fala sobre erotismo e passar do tempo: 'O sexo é o casulo humano'

Escrito durante uma temporada em Lisboa, o romance 'Um dia chegarei a Sagres' mergulha na história de Portugal e do mundo
Nélida Piñon Foto: Leo Aversa
Nélida Piñon Foto: Leo Aversa

A certa altura do novo romance de Nélida Pinõn, “Um dia chegarei a Sagres”, o personagem Mateus afirma: “Meu passatempo, mais que a leitura, é pensar o que fiz da vida”. A frase parece combinar criador e criatura. Em seu apartamento na Lagoa, de onde saiu apenas uma vez desde o início da pandemia, a escritora carioca, de 83 anos, passa as horas em meio a lembranças, programas de culinária, interações com a assistente virtual Alexa, muito trabalho e afagos em suas duas cadelas, a pinscher Suzy e a chihuahua Pilara, com a qual posou para a foto da capa desta edição. “Nós somos muito distraídos em relação à nossa vida. Nesse sentido, acho que a velhice é uma trégua maravilhosa, para termos a coragem de viajar ao passado.”

Numa entrevista de uma hora e meia concedida via chamada de vídeo, a imortal da Academia Brasileira de Letras passeia por temas como erotismo, envelhecimento e feminismo, enquanto adianta detalhes da obra que chega amanhã às livrarias, pela editora Record. Escrito à mão, durante uma temporada de um ano em Lisboa, o romance de 512 páginas é narrado em primeira pessoa por Mateus, um homem pobre, filho de uma prostituta, criado pelo avô numa aldeia portuguesa do século XIX. Diante da proximidade da morte, ele revisita suas jornadas que se fundem com a própria história da nação onde vive. “O livro é feroz”, avisa Nélida.

REVISTA ELA: Qual o ponto de partida do novo romance?

Nélida Pinõn: Esse livro estava em mim há muitos anos. Mas sabia que, além dos conhecimentos que já tinha sobre a história portuguesa, precisaria ouvir os ruídos da língua. Queria perpassar o idioma afetivo desde o século XV e dominar a paisagem que esteve a serviço dos heróis e dos miseráveis. Tive dificuldade por causa do meu amado cachorrinho Gravetinho. Dono de uma personalidade muito difícil, ele engordara porque adorava queijos e comer bem, e eu teria que pô-lo no porão do avião. Ele morreria. Então, sacrifiquei esse projeto. Quando o Gravetinho faleceu, em julho de 2017, pensei: “Agora, posso ir”. Levei, então, a Suzy Piñon, a quem dedico o romance também. Cada livro tem uma vocação. Esse tem a de enveredar pelos mistérios de uma nação. Ao contar a história de Portugal, também nos explica a história do mundo, porque eles (os portugueses) invadiram os oceanos. O período áureo das descobertas é extraordinário.

Nélida Piñon em seu apartamento Foto: Leo Aversa
Nélida Piñon em seu apartamento Foto: Leo Aversa

E como chegou ao personagem Mateus?

A cada dia, tenho a sensação de entender melhor os oprimidos e os miseráveis. O livro é feroz. Quis que o personagem provasse que as utopias não são um privilégio dos ricos, dos que vão inaugurar o mundo oficialmente, dos que vão pegar os barcos e ir a todos os lugares. São um privilégio humano. Mateus termina tendo utopias, mas sempre do ponto de vista de um miserável. Ao mesmo tempo, mostra a alta sensibilidade crítica dos pobres, quando se descobre vítima do rancor social, muito importante nesse livro.

O personagem tem uma relação muito forte com o avô, como a senhora...

Todo mundo deveria ter uma relação poderosa com o avô. Os jovens de hoje empobreceram muito por ausência dos avós. Não têm uma voz intermediária entre eles e as civilizações deixadas para trás. A professora que me assessora (sua assistente Karla Vasconcelos) diz que tenho três grandes temas: o avô Daniel, Machado de Assis e os gregos. Eu disse uma vez, brincando, que foi como se eu fosse preparada para ser uma grande cortesã da Colette, no livro “Gigi”. Eu preparava os charutos para ele (o avô Daniel) , o conhaque. Ele me buscava para irmos aos restaurantes, me ensinava a escolher a mesa. Figura essencial na minha vida.

Há muitos pontos de erotismo no livro, incluindo uma tensão sexual entre dois homens...

O que não é raro, mas é abafado. A nossa sociedade não enseja que o ser humano possa expandir seu erotismo, que, de certo modo, é condenado. Não é de bom tom você acolher as manifestações eróticas com naturalidade. O erotismo depende da imaginação. E a imaginação da pessoa cobra um corpo para poder executá-la. Então, no livro, é indispensável. E ele (Mateus) era novo, tinha um corpo poderoso. Acho o sexo uma das áreas mais misteriosas do indivíduo. O sexo é, vamos dizer, o casulo humano.

Como a senhora se alimenta do erotismo?

É um segredo mais do que mortal, é imortal. Mas, quando o corpo falha, a mente ressurge. De todo modo, sou um ser atento. Não sou distraída diante dos fenômenos humanos. O erotismo, além de ser físico, é verbal, concentra-se numa grande percepção do mundo. É algo de alto refinamento. Está ao alcance de todos.

E qual foi a última paixão de Nélida Piñon?

Isso eu não posso contar, porque é vigente.

Sente-se solitária em algum momento?

Nem pensar. Adoro a solidão quando a quero. Não é a solidão de quem padece do repúdio alheio, sou uma mulher das amizades. Tive tempo de ser uma pessoa mundana, no sentido da vida social, dos amigos, dos jantares, das viagens... Agora, como escritora, preciso ficar sozinha, e fico. Em casa, sou muito alegre. Adoro ver a cozinha, classifico as comidas. Depois de trabalhar oito, nove horas, ponho um programa gastronômico. Discuto com os chefs, acho que eles abusam dos temperos (risos).

Nélida e sua cadela Pilara, à qual o novo livro também é dedicado Foto: Leo Aversa
Nélida e sua cadela Pilara, à qual o novo livro também é dedicado Foto: Leo Aversa

C omo tem sido a rotina da senhora?

Posso trabalhar de oito a dez horas por dia e sempre escuto música. Não estou submetida ao horror de uma rotina. Fora a dor do mundo que me atinge, a coisa terrível dessa pandemia, estou com uma vida serena. Em seis meses, só saí uma vez.

Que tipo de música escuta?

Exalta-me Wagner. Sobretudo, amo “O anel (do Nibelungo) ”, que são as quatro óperas. A cena “Cavalgada das Valquírias” é de uma força impetuosa. Todos os dias, a escutava, pelo menos, umas cinco vezes, porque inventaram a tal da Alexa (dispositivo de inteligência artificial da Amazon) aqui em casa, e é a única coisa que ela sabe fazer. Eu digo assim: “Alexa, toca Richard Wagner”. Não tinha outra coisa. Só a “Cavalgada”.

Já disse que o Gravetinho intensificou a sua relação com os animais. Como tem lidado com essa situação de queimadas no Pantanal?

Estou numa fase em que certas dores muito poderosas, que já sei que existem, não vejo. Não olho as fotos, porque teria vontade de morrer. E não quero. Quero apostar numa sociedade justa. Tenho a sensação de que, já que não posso salvar os desvalidos, que então eu vá embora de uma vez. Não estou suportando a dor humana.

Em “Uma furtiva lágrima”, seu livro anterior, a senhora escreve “minha morte não é inspiradora”. Como lida com o tema na vida pessoal?

Penso nela todos os dias. Ora penso que vou me despedir, ora que quero ouvir Schubert, ora que não quero, de modo algum, ser enterrada com a farda da Academia (Brasileira de Letras) . Tenho uma imensa curiosidade de como ela vai se apresentar. Peço a Deus que eu seja elegante na minha morte, não seja escandalosa, não fraqueje. Quero partir deixando um legado. no novo livro, Mateus diz: “Meu passatempo, mais que a leitura, é pensar o que fiz da vida”.Somos muito distraídos em relação à nossa vida. Nesse sentido, acho que a velhice é uma trégua maravilhosa, para você ter a coragem de viajar ao passado. Atualmente, é raro o dia em que não penso em minha mãe. Fico impressionada ao me dar conta de que fui um projeto dela. Também tenho pensado em nomes que tinham desaparecido ao longo da vida. Não vejo isso como uma despedida, mas como a necessidade de me por “al día”.

Detalhes do apartamento Foto: Leo Aversa
Detalhes do apartamento Foto: Leo Aversa

Que conquistas a idade tem lhe proporcionado?

O corpo me sonegou muito a visão. Estou enxergando mal, mas a cabeça se organiza de uma forma inédita. Amanheço me questionando. Deixa-me feliz pensar que não tenho medo de pensar. Há uma frase que dizia, com uns 22 anos: “Todos os dias, alguém bate à sua porta, de forma simbólica, convocando você a desistir. E você, de forma nobre e elegante, diz: ‘Não. Muito obrigada. Eu não desisto’”. E é o meu caso. A tarefa de me emudecer vai ser da morte ou da doença.

A senhora foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras. Identifica-se com o feminismo contemporâneo?

Sou uma feminista histórica. Os meus primeiros livros já são feministas. Acho o movimento essencial. É o que vai conciliar a sociedade e igualar os direitos. Não é para fazer das suas propostas políticas batalhas anticivilizatórias. Posso entender alguns excessos, mas não todos. Lutamos pela igualdade de forma rigorosamente elegante, de tal forma que nós, as mulheres que entraram na Academia, damos exemplos aos acadêmicos do que eles perderam sem a nossa presença.

Ainda tem mais obras por vir?

Às vezes, acho que não vou ter mais tempo para um grande romance. Mas sinto um arrebato que pede obra. Tenho dois projetos já em pauta: um livro sobre o Gravetinho e vou organizar outro de ensaios, com toda a minha poética. E aí tenho um projeto romanesco. Vamos ver se consigo fazer. Eu sei que fazer um romance como esse de agora é um milagre que ocorre poucas vezes. Geralmente, o romancista, a partir dos 70 anos, sente dificuldade em lidar com as complexidades de um grande romance. É um grande feito, e eu consegui. Graças a Deus, fiz um romance de maturidade, com idade.