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'A Zona Sul do Rio está meio sem assunto', reflete Heloisa Buarque de Hollanda

Uma das maiores intelectuais do país, escritora completa 80 anos com três livros em apenas um ano e diz curtir Anitta e feminejo
Heloisa Buarque de Hollanda Foto: Chico Cerchiaro
Heloisa Buarque de Hollanda Foto: Chico Cerchiaro

"Você tocou a campainha de bobo", diz Heloisa Buarque de Hollanda, sobre a dispensa de cerimônia para entrar no apartamento onde mora, em Ipanema. Com os pés calçados apenas por um par de meias, ela recebeu a Revista ELA no último dia 26, data exata em que completou oito décadas de vida, para esta entrevista. Uma das maiores intelectuais em atividade do país e responsável por um dos badalos mais célebres da história do Rio, o mítico réveillon descrito no começo do livro “1968: O ano que não terminou”, de Zuenir Ventura, Heloisa continua festeira. Só mudou a intensidade: “Não tenho mais aquela coisa de dar festas, mas tem sempre gente almoçando ou jantando na minha casa. Toda quarta-feira é um Natal”.

Sem abrir mão de sua agenda como pesquisadora da UFRJ, ela chega aos 80 anos de peito aberto. Tatuou, em 2017, as iniciais dos sete netos, está escrevendo mais do que nunca (só nos últimos seis meses foram três livros), tem estudado “cultura evangélica” e casou-se consigo mesma depois de duas separações. “Estou numa lua de mel infinita. Nunca me senti tão completa.” Na conversa a seguir, Heloisa, que lança o livro “Onde é que estou?” nesta quarta-feira, na Villa Maurina, no Humaitá, e publica “Pensamento feminista hoje” até o fim do ano (ambos pela Bazar do Tempo), passeia pela história sem se amarrar a saudosismos. Afinal, olhar para frente é uma especialidade da casa, se possível, ao som de um bom feminejo. “Acho o agora muito melhor”, diz, mesmo depois de compartilhar as mais irresistíveis lembranças dos anos de desbunde.

O GLOBO: Você nasceu em Ribeirão Preto e chegou ao Rio aos 4 anos. Qual a sua identificação com a cidade?

Heloisa Buarque de Hollanda: Total. Minha infância e juventude eram na praia, das 10h às 18h. Antigamente, a areia era uma festa, um ponto de encontro. Isso está voltando um pouco, acho, porque as minhas netas vão à praia. Mas os meus filhos andam no calçadão.

A fama de festeira ainda está valendo?

Essa coisa de festa para mim é importante. Eu dei aquele tal réveillon (de 1968, junto com o seu primeiro marido, Luiz Buarque de Hollanda), que marcou a virada. A nossa geração, dos anos 1960, da turma do Cinema Novo, é muito festeira. Foi a era entre a passeata e a festa, ? Era tudo muito político, no sentido comportamental. Agora, passei da festa de alta intensidade para a de baixa intensidade. Tem sempre gente almoçando ou jantando na minha casa.

O tal ano novo é o exemplo máximo de festa de alta intensidade?

Sim. Resolvemos na praia, de repente. E fizemos a insensatez de dizer que a entrada eram duas garrafas de uísque por pessoa. Acabaram todas. Isso foi uma maluquice, mas foi muito feliz, porque estávamos quase dando certo. Depois veio o AI-5 e acabou com a festa.

Como tem sido os 80 anos para você?

Acho que estou negando. Quando fiz 70, me assustei, vi a morte. Mas estou dizendo que tenho 80 há uns três anos. Acho que fui malandra e não senti a passagem. Estou muito feliz.

Neste novo livro, você comenta sobre uma compulsão por escrever vinda com a idade.

Fiz três livros nos últimos seis meses e estou fechando mais um. A hora é essa. Tenho que registrar tudo. Estou trabalhando o dobro do que quando tinha 50, 60. Só pode ser pânico.

Por que esse pânico?

Porque eu vou morrer. Não fico pensando nisso, mas é óbvio que é o instinto.

Você tem medo da morte?

Não da minha. Tenho medo da morte dos outros.

Qual a sua relação com a UFRJ hoje?

Tenho dois laboratórios, a Universidade das Quebradas e o Laboratório da Palavra, que idealizei e construí, mas estou passando a coordenação para outras pessoas. Agora estamos abrindo o Laboratório de Feminismo Teoria e Práticas. Tudo dentro da Faculdade de Letras, onde tenho o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, com um pós-doutorado.

Como foi viver os tempos do desbunde?

Desbundei pouco, bem menos do que os outros. Tinha três filhos, era professora, sustentava uma família e tinha acabado de me separar. Acho que desbundei no trabalho, com a literatura marginal, a periferia, o feminismo, misturava os mais variados níveis. Experimentava drogas em festas, como a geração toda. Mas não era uma pessoa que ficasse comprometida com isso.

Como é a vida afetiva de uma mulher de 80 anos que passou por duas separações?

Casei comigo. Não há namorado no mundo que me faça tão feliz. Nunca me senti tão completa. Quando me separei (do segundo marido, João Carlos Horta) , pintou “eu” na minha frente.

O desejo de se tatuar surgiu há pouco tempo, não é?

Há dois anos. Falei a uma amiga da minha nora que gosto de tatuagem, mas estou velha. Aí ela disse: “Agora que é bom, porque vai durar pouco”. Foi a coisa mais sábia que já ouvi. Primeiro, fiz as iniciais dos netos. Depois, desenhos feitos por eles. Também tem a aranha da Louise Bourgeois, minha artista predileta.

Você diz que, depois de 1968, as mulheres mudaram e os homens, não.

O 1968 foi uma coisa compartilhada entre homens e mulheres, mas houve o feminismo e a pílula. Mexeu-se com a liberdade sexual delas, algo que o homem sempre teve. Elas foram catapultadas pela revolução sexual e não pararam.

Qual o peso do feminismo hoje?

O feminismo agora está espalhado. Elas querem reinventar a lógica de consumo e, entre outras coisas, estão repensando até a comida. Virou, com o ambientalismo, a chance de mudança.

E qual o tamanho disso?

Gigante. Podem se chatear, tirar bolsa de pesquisa, tirar filme que fala de mulher, que a coisa não vai parar.

Um dos temas que você tem se debruçado é o que chama de cultura evangélica.

A poesia, a cultura e o comportamento da periferia, mesmo para não-religiosos, é evangélica, com a ideia do fazer pelas próprias mãos, do poder da palavra. Você vai num sarau na periferia e o poder da palavra é sobre o que mais se fala. Isso é uma máxima evangélica. Você ouve muitos fragmentos dessa cultura potencializados em outras direções.

Por que acha que o futuro vem da periferia?

A favela é uma mistura de centro e raiz, claramente um laboratório de produção cultural. É de onde vem coisa nova. Não é coisa de pobre. Cada vez chega mais.

Durante as fotos, você disse que gosta da Anitta.

Adoro. Gosto de feminejo também. As mulheres do sertanejo estão mandando ver! Isso é cultura, pelo menos para mim. Não é só o Picasso, que acho maravilhoso. Mas a gente sai, olha para o quadro, fica feliz, toma um vinho branco, volta para casa e nada aconteceu. Porque já aconteceu quando ele criou, lá atrás. Agora a gente tem que olhar para o que está aparecendo.

Você acha que a Zona Sul está meio em baixa?

Acho. Está meio sem assunto. Se você mistura o público, a coisa funciona. Mas, se botar todo mundo igual, não vai pegar porque não tem nada de novo. É preciso misturar, ouvir e criar uma coisa mais híbrida. O Vidigal é aqui ao lado, mas as pessoas não vão lá. E o Vidigal pode vir para cá também. Eu levo o Vidigal para a UFRJ. As pessoas têm que ouvir o mundo e não fazem isso.

Como vê os ataques às universidades públicas?

Acho que não vão colar, elas são a inovação, a economia. São as únicas que financiam pesquisas. Só quem aguenta ensino e pesquisa é a universidade pública porque tem dinheiro do Estado. Se você comprometê-las, o Brasil passa a andar para trás.

Como enxerga o crescimento da extrema direita?

Acho que, se a direita não vier numa direção xiita, temos que esperar para ver, porque pode haver nuances. Mas uma coisa perigosíssima que acontece nos governos do Brasil e dos EUA, por exemplo, é a ligação direta com o eleitorado pelo Twitter. Isso é enlouquecedor. O Parlamento existe para representar o desejo de toda a nação e não de um grupinho de eleitores.