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Alice Caymmi fala sobre diferenças familiares: 'Já não peço acolhimento. Então, só não me atrapalhem'

Cantora lança 'Imaculada', álbum gestado sobre as próprias dores e responde, sem rodeios, aos opressores
Alice veste casaco Andre Betio, brincos Paula Rondon Foto: Sher Santos
Alice veste casaco Andre Betio, brincos Paula Rondon Foto: Sher Santos

A certa altura de seu último álbum, “Electra”, lançado em 2019, Alice Caymmi suplica, num tom melancólico: “Me deixe livre pra pensar/ Veja o que me fez/ Me fez sofrer, me fez chorar”. É uma interpretação para os versos de “Pelo amor de Deus”, de Tim Maia. “Era um disco de crise. Bolsonaro tinha sido eleito, e não havia clima para festa”, relembra a cantora carioca, de 31 anos. Na época, ela também surgiu com os cabelos raspados na capa do álbum e nos shows, num indicativo estético de que uma nova fase estava por vir. “Foi um renascimento. Falei assim: ‘Quer saber? Vou sair desse lugar. Saio chorando, mas saio. Caio, mas caio atirando.’ Queria construir uma nova Alice. Comecei do zero.”

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Dois anos depois, fica claro que a empreitada foi bem-sucedida. Os cabelos já estão na altura dos ombros, e “Imaculada”, seu quinto álbum, chega às plataformas no dia 15, cercado de simbolismos. No clipe de “Serpente”, single lançado no mês passado, a cantora se mostra à vontade com o próprio corpo, como nas cenas em que aparece seminua, coberta por espuma. Uma atitude libertadora para quem sofreu com distorções de autoimagem que a levavam a ficar deprimida e trancada no quarto, ao longo da juventude. “Bati numa parede e falei: ‘Quer saber? Chega!’. Não tenho a menor condição de viver dessa forma. Sempre ouvi que ficar gorda é a pior coisa do mundo. E aí o que aconteceu? Engordei 20 quilos na pandemia e pensei: ‘Pronto! Acabou minha carreira’. Então, ou passo por cima e faço disso um statement ou vou ficar parada. Não foi fácil. Mas ali (no clipe) era uma exposição bela.”

Top Loungerie, saia acervo, brincos Paula Rondon, pulseiras Ara Vertanian, cinto Otávio.Inc. Foto: Sher Santos / Beleza: Rogério Magalhães | Assistência de foto: Julia Leite | Produção de moda: Jorge Moura | Camareira: Itaema Soares | Produção executiva: Octavio Duarte | Assistência de produção executiva: Leonardo Olavo
Top Loungerie, saia acervo, brincos Paula Rondon, pulseiras Ara Vertanian, cinto Otávio.Inc. Foto: Sher Santos / Beleza: Rogério Magalhães | Assistência de foto: Julia Leite | Produção de moda: Jorge Moura | Camareira: Itaema Soares | Produção executiva: Octavio Duarte | Assistência de produção executiva: Leonardo Olavo

A mesma eloquência aparece nas letras das dez faixas do novo álbum, cuja grande maioria é assinada pela cantora e não escondem as feridas. “Por mais que a pandemia seja um negócio horroroso, e não acho que foi um momento de evolução espiritual coisa nenhuma, consegui olhar para dentro. Observei muitos aspectos importantes e compus como nunca”, conta, em entrevista por chamada de vídeo de sua casa, em São Paulo.

Gestado em cima das dores que viveu, o trabalho responde, sem rodeios, aos opressores. “Eu tenho o direito de me expressar/ E viver do jeito que eu quiser viver/ Dois pesos, duas medidas/ É de se esperar/ O dedo é na ferida/ Mas eu digo não”, canta, de modo catártico, em “Serpente”. “É uma coisa que eu tinha para dizer, mas estava guardada. Fico pensando, às vezes, para quem é essa música, sabe? Não é endereçada especificamente a uma pessoa, mas a várias. Tem a ver com as muitas situações de repressão de personalidade e de expressão.”

Casaco Andre Betio, brincos Paula Rondon, meia-calça Lupo, meias Altai, tênis Reebok Foto: Sher Santos
Casaco Andre Betio, brincos Paula Rondon, meia-calça Lupo, meias Altai, tênis Reebok Foto: Sher Santos

Ainda que ela não dê nomes aos bois, é difícil não pensar na relação com os familiares, cujas fissuras foram trazidas a público após uma entrevista explosiva da tia, Nana Caymmi, ao jornal Folha de São Paulo, em março de 2019. “Eu tinha muita esperança de que ela fosse para o meu caminho. Achei que Alice ia dar mel, mas não deu”, disse Nana, na ocasião. A sobrinha respondeu, horas após a publicação da reportagem, por meio de uma postagem em suas redes sociais. O texto falava sobre uma trajetória marcada por “muita rejeição e, por vezes, violência”.

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Não se trata, segundo Alice, de agressão física, mas de algo que provoca dores profundas. “Acordar e descobrir que a sua tia falou mal de você no jornal é uma das maiores violências que alguém pode sofrer”, desabafa. “Não gosto das dinâmicas de violência que foram instituídas dentro da minha família. Não me identifico com a maior parte dos pensamentos que surgem dali nem com a maneira como a obra do meu avô (Dorival, morto em 2008, aos 94 anos) é administrada. Eu me vejo com muita dificuldade de estabelecer um diálogo, porque é tudo muito violento, na minha opinião. Já não peço acolhimento. Então, só não me atrapalhem.”

Moletom Stay Ugly, vestido Trashrealoficial, meias Surreal, tênis Converse, brincos Paula Rondon, bolsa Fendi, óculos Evoke, colar Louis Vuitton Foto: Sher Santos
Moletom Stay Ugly, vestido Trashrealoficial, meias Surreal, tênis Converse, brincos Paula Rondon, bolsa Fendi, óculos Evoke, colar Louis Vuitton Foto: Sher Santos

Alice conta que, nos últimos anos, tentou estabelecer algum tipo de conversa com os familiares, mas desistiu. Hoje sua relação é restrita aos pais, os músicos Simone e Danilo Caymmi, filho mais novo do artista baiano (Nana é a primogênita seguida por Dori). “Vou sempre falar com meu pai e minha mãe. Está tudo certo entre nós”, afirma a jovem, que também é a única entre os netos de Dorival a fazer do canto o ofício. “É difícil passar por cima de determinadas coisas. Fico muito ferida. Não dá para ser sempre a pessoa que releva. Não vou ter medo. Prefiro me proteger.”

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Do avô, que morreu quando Alice tinha 18 anos, ela se lembra com doçura. Os dois se viam pouco, mas “havia um entendimento bom um do outro”, quando estavam juntos. “Ele sabia quem eu era desde quando ainda era bebê. Chamou meu pai num canto e disse: ‘Ó, vai rolar! É estrela’”, conta.

Moletom Stay Ugly, vestido Trashrealoficial, meias Surreal, tênis Converse, brincos Paula Rondon, bolsa Fendi, óculos Evoke, colar Louis Vuitton Foto: Sher Santos
Moletom Stay Ugly, vestido Trashrealoficial, meias Surreal, tênis Converse, brincos Paula Rondon, bolsa Fendi, óculos Evoke, colar Louis Vuitton Foto: Sher Santos

A percepção sobre o talento precoce da neta de Dorival foi compartilhada, anos depois, por outra veterana da MPB, Fafá de Belém. “Fui botar a voz num fado do pai dela e, de repente, entra uma garota vestida de colegial e diz assim: ‘Pai, preciso estudar’”, narra a cantora, imitando o tom grave de Alice. “Quando ela abriu a voz, eu caí sentada. Era uma menina com o potencial vocal dos Caymmi e de uma beleza absoluta.”

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Fafá ressalta também a liberdade com que a jovem transita pelos diferentes gêneros musicais. Entre as faixas mais populares de Alice nas plataformas de streaming estão, além das canções autorais, uma versão de “Abandonada”, hit na voz da própria Fafá (que amou a releitura) e uma eletrizante interpretação de “Me leva”, de Latino. “Não deve ser fácil carregar o sobrenome Caymmi. Ela poderia ficar ligada apenas à história da família, que é poderosíssima, mas não. Soltou as asas e voou”, reconhece Fafá. A análise é consonante com a da própria Alice, que diz: “Eu podia botar um caftã e cantar MPB. Mas fui pelos caminhos mais difíceis”.

Casaco Fendi, vestido feito de camisetas Hering, brincos B.Luxo, meias Adidas e tênis Fiever Foto: Sher Santos
Casaco Fendi, vestido feito de camisetas Hering, brincos B.Luxo, meias Adidas e tênis Fiever Foto: Sher Santos

O mesmo vozeirão que impressionou Fafá também emociona uma amiga de infância, Maria Luiza Jobim, cantora que é filha de Tom e afilhada do Danilo Caymmi. “Ela pega um violão e toca diante de qualquer um. Pode ser o Caetano Veloso ou uma pessoa que nunca viu”, conta. “Também tem uma voz muito própria. Desde sempre, quando abre a boca, inunda o ambiente. Acho que ela sempre lidou bem com a origem familiar, assim como eu. Há muito mais uma preocupação de seguir um caminho que faz sentido para cada uma. O nosso compromisso é com nós mesmas, com a nossa vocação e a nossa verdade.”

A autenticidade também faz com que Alice se sinta parte de uma nova cena dentro da música brasileira. “Tem um pop alternativo surgindo que se debruça muito sobre o rock”, avisa, citando “Imaculada” como parte dessa movimentação. No caso dela, a música vem sempre embalada de uma estética elaborada. Isso aparece na maneira como ela se apresenta tanto em clipes e shows, quanto nas imagens de divulgação. A capa do novo álbum leva a assinatura de Giovanni Bianco, diretor criativo que já atuou com grandes nomes do pop internacional, como Madonna. “Alice faz parte de um grupo de artistas que não tem medo de usar a imagem a seu favor”, elogia Giovanni, antes de dar pistas sobre o que esperar do trabalho. “Ela aparece como uma santa de uma religiosidade que não existe. É bem sensual. Está vestida, mas tem muita transparência. As pessoas podem ler meio como uma Vênus de Botticelli.”

Vestido Juliana Jabour, meias Altai, tênis Vert, brincos Paula Rondon, boné acervo Foto: Sher Santos
Vestido Juliana Jabour, meias Altai, tênis Vert, brincos Paula Rondon, boné acervo Foto: Sher Santos

Embora tenha um flerte explícito com o pop, a cantora segue por uma vertente alternativa que torna o seu caminho mais complexo, se comparado aos das maiores estrelas do gênero. Ela não tem, por exemplo, a verba das grandes gravadoras para impulsionar suas canções e clipes nas redes, o que, admite, lhe causa certa frustração. “Definitivamente, desejo chegar a lugares bem maiores. Estou, inclusive, pensando em abrir mão de certas coisas, como manter uma superprivacidade, em nome disso.”

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Observando com mais critério o próprio Instagram, onde tem 91 mil seguidores, Alice notou que recebeu apenas duas mil curtidas ao postar uma foto do clipe de “Serpente”. Por outro lado, ao compartilhar um clique de uma viagem, foram dez mil. “Estou entendendo como isso passa pela lógica da própria plataforma e do público que a consome. Antes, achava chato, mas agora encaro como uma maneira de alcançar mais pessoas”, diz ela, que tem investido também no TikTok, onde se rendeu a filtros, dublagens e até dancinhas. “Entendi que não sou aquela ‘artistona’. Sou uma empresária no ramo do entretenimento.”

Camiseta Stay Ugly, saia Panim da Cachorra, brincos B.Luxo, óculos Evoke, colar Paula Rondon, bolsa Alexandre Pavão Foto: Sher Santos
Camiseta Stay Ugly, saia Panim da Cachorra, brincos B.Luxo, óculos Evoke, colar Paula Rondon, bolsa Alexandre Pavão Foto: Sher Santos

Lidar com a exposição, diz Alice, tampouco é algo que tira de letra. Embora a postura imponente e o vozeirão sejam marcas registradas, enxerga-se como uma mulher cercada por fragilidades e inseguranças. “Fui me tornando uma coisa meio mítica, até começar a achar isso chato. Sou estranhíssima”, comenta. “Por isso, advogo pela coragem. Às vezes, falo: ‘Gente, bora lá!’. Aí parece que estou segura, sem medos. Mas nunca estou, porque fui ensinada a nunca me sentir dessa maneira.”

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Difícil mesmo é saciar a curiosidade inesgotável do público — e dos algoritmos. Quando o nome e o sobrenome de Alice são digitados no Google, a ferramenta sugere como complemento o termo “namorada” e direciona a pesquisa para imagens de um beijo na boca que ela trocou com a cantora Laila Garin, no Prêmio da Música Brasileira, em 2017. Casada há quatro anos com o músico Felipe Castro, Alice acha graça. “Sou bissexual, mas nunca tive uma namorada. Isso sempre correu a boca pequena no Rio e acho que essa sugestão no Google é um pouco uma carência da internet do tipo ‘cadê a namorada?’”, diverte-se.

Os algoritmos que lutem.