Exclusivo para Assinantes
Ela Gente

Com exposições agendadas no exterior, Anna Bella Geiger relembra festas e críticas de Di Cavalcanti

Aos 87 anos, artista carioca vai a Tóquio montar instalação em mostra com mulheres do mundo inteiro
Anna Bella usa vestido Handred Foto: Bispo
Anna Bella usa vestido Handred Foto: Bispo

Não há fronteiras claras entre o que é casa e o que é ateliê no apartamento de Anna Bella Geiger. A configuração soa coerente a uma artista acostumada a romper — e subverter — divisões geográficas. Tanto que a sua próxima exposição será no que o Ocidente costuma chamar de “o outro lado mundo”. Aos 87 anos, a carioca é a única brasileira entre os 16 nomes femininos da mostra “Another energy: power to continue challenging”, com abertura prevista para abril, no prestigiado Mori Art Museum, em Tóquio.

Logo depois de abrir as portas da cobertura na Rua Paissandu, no Flamengo, onde vive com o marido, o geógrafo Pedro Geiger, de 97 anos, ela liga dois ventiladores de teto e um de chão para amenizar o calor de uma manhã de janeiro. Anda para lá e para cá no espaço tomado por trabalhos prontos, esboços e achados garimpados pelo mundo e, a certa altura, diz: “Não sou incansável, mas estou descansada”. Não há dúvidas de que a vitalidade desfilada naquele mesmo apartamento, na década de 1970, quando reunia, ao lado do marido, nomes da cena artística e intelectual em festas que varavam a noite, permanece latente.

Heloisa Buarque de Hollanda: "A Zona Sul do Rio está meio sem assunto"

Antes da abertura da mostra no Japão, a própria artista irá até aquele país para montar uma instalação. Na sequência, a agenda internacional segue movimentada, mesmo na pandemia, com uma individual agendada para maio, em Antuérpia, na Bélgica. Ver parte de sua produção correr o mundo dessa maneira revela, aos olhos da artista, o sucesso de uma carreira pouco usual. “A oportunidade não apareceu para mim com facilidade”, observa. “Nos anos 1980, em que poderia divulgar o meu trabalho no exterior, não tinha como fazer essas viagens. Não fui eu que acelerei a minha obra.”

Vestido Handred Foto: Jorge Bispo | Beleza: Letícia de Agostino | Assistente de fotografia: Nathalia Atayde | Produção executiva: André Storari e Christiano Mattos | Tratamento de imagem: Eliomar de Matos Moraes
Vestido Handred Foto: Jorge Bispo | Beleza: Letícia de Agostino | Assistente de fotografia: Nathalia Atayde | Produção executiva: André Storari e Christiano Mattos | Tratamento de imagem: Eliomar de Matos Moraes

Anna Bella atribui esse reconhecimento à atenção recebida por parte da crítica e também ao fato de ser professora. Atualmente, faz parte do quadro da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, mas já deu aulas em outras instituições, como o Museu de Arte Moderna do Rio. “Isso tudo faz com que haja agora essa intensidade”, reconhece.

Quando começou a ganhar notoriedade no meio artístico, como uma das pioneiras do abstracionismo no Brasil, ainda na década de 1950, ela enfrentou resistência de gente grande, ao compor, ao lado de nomes como Fayga Ostrower, Ivan Serpa, Lygia Clark e Lygia Pape, a “1ª Exposição de Arte Abstrata”, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, em 1953. “Havia uma guerra de ideias, e o Di Cavalcanti, que era um ótimo artista, viu a ameaça de um movimento”, conta. “Ele arrasou conosco numa entrevista. Disse que o abstracionismo é de mentes doentes e não sei mais o quê.”

Perfil: Djamila Ribeiro comemora sucesso na academia e fora dela e não descarta carreira política

Nada disso estancou a sua inquietude artística. De lá para cá, Anna Bella mergulhou em diferentes fases. Houve a visceral, baseada na anatomia humana; o mergulho na cartografia, pungente até hoje; e os experimentos no audiovisual. A versatilidade é justamente um dos aspectos que chamaram atenção do curador alemão Martin Germann, responsável pela inclusão da artista na mostra no Japão e pela idealização da individual na Bélgica. “Ela trabalhou praticamente em todos os meios imagináveis. Seu método de entrelaçar elementos estéticos asiáticos, europeus, africanos e sul-americanos também nos mostra que tudo está conectado pela História”, avalia. “Em última análise, sua obra também pode ser lida como uma declaração contra qualquer forma de polarização e, com isso, é extremamente contemporânea.”

Vestido Guto Carvalhoneto Foto: Jorge Bispo
Vestido Guto Carvalhoneto Foto: Jorge Bispo

Mas as mensagens emitidas jamais são entregues de maneira óbvia. “Uma crítica internacional, certa vez, escreveu ‘it’s funny’ (é divertido) sobre o meu trabalho ‘Brasil nativo/Brasil alienígena’. Não tem nada de ‘funny’, porra!”, protesta Anna Bella. Na obra, feita na década de 1970, ela mescla retratos seus e de indígenas, em poses semelhantes, dispostos lado a lado. Ao contrário do que muita gente pensa, a ideia não é estabelecer uma comparação de identidades. “Fiz isso num momento em que o recado político era: estamos todos sob o jugo da ditadura, sem direito ao voto e à liberdade na arte. Mas não é um recado do tipo manifesto.”

Ideias semelhantes decodificam uma de suas criações mais populares, a série “Burocracia”, também da década de 1970, em que quatro mulheres fazem o coro: “Diga conosco bu-ro-cra-cia”. “Para não falar da situação política, a burocracia era parte do momento que impedia tantas coisas de se desenvolverem”, diz, sobre as telas cuja inspiração parte de um comercial de creme para os cabelos.

Literatura: Aos 83 anos, Nélida Piñon fala sobre erotismo e passar do tempo

Ao falar sobre a obra de Anna Bella, Martin Germann diz ter compreendido que o seu trabalho “é simplesmente tão poderoso quanto ela é como pessoa”. A avaliação parece espelhar a trajetória pessoal da artista. Filha de pais imigrantes, vindos da Polônia nos anos 1920, foi criada num sobrado na Rua Santo Amaro, a poucas quadras do Palácio do Catete. Uma localização que lhe rende memórias de infância que vão do presidente Getúlio Vargas cruzando as ruas em carro aberto a uma vizinhança formada por cortiços. Jovem, estudou língua e literatura anglo-germânicas e iniciou seus estudos artísticos no ateliê de Fayga Ostrower. Também embarcou num navio rumo aos Estados Unidos, onde fez aulas de história da arte no The Metropolitan Museum of Art, em Nova York.

Camisa Guto Carvalhoneto Foto: Bispo
Camisa Guto Carvalhoneto Foto: Bispo

De volta ao Brasil, tinha 22 anos quando “topou” com Pedro, na saída da Faculdade Nacional de Filosofia, onde retomara os estudos. Foram três dias de investidas até que o rapaz finalmente conseguiu o telefone da artista, prontamente anotado numa folha de jornal. O flerte, ela conta, começou com um respeitoso “olá!”, bem diferente de algumas abordagens que a atormentavam.

“Eu era uma pessoa fisicamente muito atraente. Era muito chato. Não podia andar na rua, aqui ou em Nova York, que as pessoas mexiam comigo. Não me pintava, não me penteava, mas era assim”, conta Anna Bella. Seus encantos atraíram até o fotógrafo do poeta Pablo Neruda. “Quando fui ao Chile, já com filhos, ele quis me fotografar. Tenho registros lindos em Valparaíso.”

Sexo: Mulheres usam redes sociais, cursos e arte para democratizar informações sobre o clitóris

O sexo, diz a artista, nunca foi tratado de modo liberal. Afinal, a pílula só apareceu depois que já era mãe de quatro filhos. “Tive um cara lá fora (quando foi para os Estados Unidos, na juventude) , mas a gente não podia fazer nada, porque seria besteira”, confidencia. Por outro lado, a relação entre ela e Pedro nunca ganhou ares de prisão. “Não é imoral eu ter sentido algo, num certo momento, em relação a outro homem”, diz. “Pensam que o oposto de fidelidade é traição. Mas há intermediações entre essas duas coisas.”

No último dia 15, os dois completaram 65 anos de união, um feito digno de nota. “Depois de uma certa idade, temos uma aliança. Não digo que seja espiritual, porque acho isso uma besteira. Mas uma aliança de promessas mentais de que vamos até o fim”, analisa. “A permanência traz o lado carinhoso da coisa.”

Entrevista: 'Tenho medo de um filho atrapalhar', diz Fabio Porchat sobre sintonia no casamento

Da relação, vieram os filhos Noni, de 64 anos, os gêmeos Lew e David, de 63, e Nina, de 61, numa genealogia que se ramifica por oito netos e quatro bisnetos. Noni chega à casa minutos depois da equipe da revista, munida de doces folhados com passas que a mãe adora. “É o gosto da mamãe”, diz. Enquanto Anna Bella se prepara para as fotos, a filha rememora a infância. “Lá em casa, tinha papel e caneta desde sempre. Também me lembro de que ela tinha as unhas ruídas e sempre sujas de tintas. Além de tudo, era descabelada. Certa vez, foi ao programa do Chacrinha, e as vizinhas comentavam: ‘Poxa, Anna Bella, nem para ir ao Chacrinha você penteou o cabelo”, diverte-se Noni, antes de narrar passagens mais dramáticas, como a prisão do pai, durante a ditadura. “Ele trabalhava no governo do Lacerda, e um cara o denunciou como comunista. Os policiais chegaram lá em casa, e ele vestiu a calça social por cima do pijama. Depois disso, mudamos, em 1969, para Nova York, onde papai foi dar aula de Geografia na Universidade de Columbia.”

Camisa Guto Carvalhoneto e saia Amaro Foto: Jorge Bispo
Camisa Guto Carvalhoneto e saia Amaro Foto: Jorge Bispo

Noni, que hoje é professora da Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, também testemunhou, ao lado dos irmãos, as tais festas dadas pelos pais, nos anos 1970. Os encontros eram um oásis em meio à atmosfera soturna da ditadura e, no vaivém animado dos convidados que riscavam o chão, estavam nomes importantes da arte contemporânea, como os curadores Paulo Herkenhoff e Lauro Cavalcanti. “Esses eventos eram divertidíssimos”, recorda-se Lauro, hoje à frente da Casa Roberto Marinho. “Havia uma troca de ideias muito boa, de um jeito muito informal. Depois, dançava-se. Mas essa era a parte em que eu era menos brilhante. O Paulo era reconhecido como o melhor dançarino.” Segundo Anna Bella, os estilos iam da dança de salão ao foxtrot e chegaram a render acalorados concursos. “Os vizinhos não reclamavam porque quem morava do nosso lado era a Deborah Colker, ainda criança”, conta.

Perfil: Andrea Beltrão comemora 15 anos do teatro Poeira e critica secretaria especial de Cultura com Mário Frias

Depois de quase quatro horas de conversa, o sol começa a sumir entre os prédios vizinhos, e o papo caminha para o fim. Com as pernas dobradas sobre o assento da poltrona, Anna Bella faz um balanço sobre o valor de tudo o que viveu até aqui. Surge, então, uma frase curta, que parece condensar o seu sentimento: “Depois de ter passado por todas essas vivências, fica uma reserva que me deixa em paz”.