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Em rara entrevista, Marisa Monte diz que, em vez de gritar contra o governo, promove ‘vacina musical’

Cantora também fala sobre ‘Portas’, primeiro disco de inéditas em dez anos, e analisa convivência com os filhos na pandemia
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA

Marisa Monte vive atenta aos sinais. Isolada em casa com os filhos, Mano Wladimir e Helena, de 18 e 12 anos, e com o marido, o empresário Diogo Pires Gonçalves, desde o início da pandemia, a cantora recebeu poucas visitas. Uma delas, em especial, a marcou: certa manhã, um bicho-preguiça surgiu no jardim da residência cercada por Mata Atlântica, no Rio. “Precisei chamar os bombeiros para levarem o Sidnei, como o batizamos. Acredito que ele apareceu para a gente acalmar. E lembrar que tudo na vida tem seu tempo”, sorri a cantora, de 54 anos. Em seu ritmo, ela acaba de lançar “Portas”, quase uma década após o último disco de inéditas, “O que você quer saber de verdade”.

Com a vida em “pausa de mil compassos”, Marisa passou grande parte da quarentena em seu jardim, local escolhido como cenário para as fotos que ilustram estas páginas. O ensaio foi todo produzido por ela, que fez a própria maquiagem, pegou as asas de borboleta emprestadas da filha e usou brincos de onça dados de presente pela artista plástica Marcela Cantuária, responsável pela identidade visual do novo álbum (leia mais sobre a parceria na página 19). A vira-lata Vilma fez participação especial.

A família ainda tem os cães Pudiva e Pudson, mãe e irmão de Vilma, além dos gatos Sonia, “a matriarca”, e Haroldo, adotado na pandemia. “Moro numa casa, com um pouco de terra para pisar, manter os pés no chão é sempre bom. Gosto muito de secar o cabelo no sol e ficar ao ar livre, o que, apesar do espaço limitado, foi fundamental na quarentena. À noite dá para ver a lua e, às vezes, espero para observar a passagem da Estação Espacial Internacional, com cientistas de vários países, e fico pensando na imensidão infinita”, conta Marisa.

Marisa Monte Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA

Em uma hora e meia de entrevista por chamada de vídeo, a cantora contou como o convívio intenso com os filhos a ajudou no isolamento, criticou o descaso do governo federal com a cultura e defendeu uma “resistência poética”. Confira a seguir:

Tem quase 10 anos do seu último disco de inéditas, o “O que você quer saber de verdade”. Por que tanta espera?

Eu não parei. Nesse período, teve o disco “Coleção” (2016), na sequência, recebi o convite, irrecusável, para fazer shows com Paulinho da Viola. E, depois, veio o “Tribalistas” (2017) com o Arnaldo (Antunes) e o Carlinhos (Brown). Colaborações são nutrição artística. É o movimento oposto do que quem sai de uma banda para carreira solo: é mais leve, mais relax estar junto. De fato, são dez anos desde o último disco de inéditas, mas existiram sete projetos e três turnês no meio do caminho. O último show que fiz foi em Fortaleza, em fevereiro de 2020, num festivalsão. A ideia era me recolher para produzir o disco e entrar em estúdio em maio daquele ano. Mas em março, com a pandemia, a vida entrou em pausa de mil compassos.

“Calma” já nasceu um hit. A ideia foi dar um acalanto geral diante do baixo-astral nacional?

O disco todo tem essa intenção, é positivo porque eu sou uma pessoa que tem esperança. Estamos vivendo um momento trágico. Mas, analisando uma curva de tempo histórica, de 60, cem anos atrás, dou graças a Deus por ser uma mulher de hoje. A minha tataravó cantava lindamente, tenho todos os livros de ópera dela, mas ela jamais teria uma carreira como a minha. Melhorou muito para as causas identitárias, na construção coletiva da sociedade. O progresso não é uma linha reta, há momentos de retração, guerra, epidemia, contratempos transformadores. Não falo de um ponto de vista empírico ou com um positivismo vazio, mas com análise histórica. E nem sempre evoluímos na velocidade que gostaríamos. Queria que essas músicas trouxessem conforto. “Calma” foi feita três, quatro anos atrás, tanto que fala sobre “tempestade em copo d’água”, e estamos mais para nau desgovernada na tempestade. Mas é o que muita gente queria ouvir agora, uma vez que aponta para o futuro de forma assertiva. Tenho essa fé porque canto para multidões e, quando todos cantam juntos, é sempre afinado. Mesmo que um ou outro desafine, a harmonia sobressai.

“Pra melhorar”, parceria com Seu Jorge e a filha, Flor, reforça a ideia da música como remédio?

É um remédio para mim. E quantas pessoas já me relataram que canções minhas as ajudaram a processar dores e perdas... Mas não é programado. Nunca sei como a letra vai dialogar com o contemporâneo. “Pra melhorar” também é uma música antiga, que poderia ter sido feita agora, assim como “Calma” e “Portas”.

Marisa Monte Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA

A música “Déjà vu”, como muitas outras de seu repertório, fala sobre amor. Como é o processo de composição? Você pensa no amor que está vivendo?

Nem tudo é literal. No mesmo álbum ( “O que você quer saber de verdade” ) tem “Ainda bem” e “Depois”. Não estávamos eu, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown ( parceiros de “Depois” ) nos separando naquele momento. Mas o compositor tem um acervo de sentimentos, todo mundo já viveu uma paixão que faz falar com as paredes ( cantarola o refrão “Amor I love you” ) ou um pé na bunda. Às vezes é literal, como foi em “Gentileza”.

“Déjà vu” é uma das cinco parcerias com Chico Brown. Como é a relação de vocês?

Chico eu vi nascer. A cada ano que ia visitar a família na Bahia, ele estava tocando um instrumento diferente. Começou com tambores, depois foi para os pianos e teclados, quando vi estava nas guitarras. É um multi-instrumentista, super compositor e produtor musical por formação. Cresceu vendo a gente trabalhando em “Tribalistas”. Com idade mais adulta, veio morar no Rio e a gente passou a se encontrar mais, independente do Carlinhos. Fizemos uma, duas, três músicas... Foi tudo muito natural porque a gente já tinha certa intimidade, familiaridade mesmo.

Outra parceria é a Flor. Como é a troca com a nova geração?

É outra que conheço da vida inteira, é já veio predestinada para a música. É emocionante estar viva para vê-los se tornarem meus parcerios. É um disco transgeracional, um aspecto do meu trabalho, aliás, desde o início.

Tem também “Quanto tempo”... Você lida bem com a passagem dos anos? Tem medo de envelhecer?

Minha vida tem muitos ganhos. Então, lido com gratidão. Mas não acontece de uma hora para outra: acordei e tô velha. É aos pouquinhos. As construções servem de recompensa pelo tempo que passou. Beleza, já não tenho mais 30 anos, mas tenho filhos, um monte de músicas, não preciso provar mais nada.

Marisa Monte e Vilma: cantora ainda tem mais dois cachorros e dois gatos em casa Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte e Vilma: cantora ainda tem mais dois cachorros e dois gatos em casa Foto: LEO AVERSA

Como vê o descaso com a Cultura no governo Bolsonaro?

Vejo como um desperdício. É uma grande falta de visão não promover esse motor econômico que é a cultura no Brasil. Não podemos ser tratados como vagabundos. Somos profissionais que geram muitos empregos. Espero que o próximo governo, no mínimo, recrie o Ministério da Cultura e uma política de acesso à cultura em vez de demonizar os artistas. Enquanto isso, sigo fazendo resistência poética e amorosa.

As suas redes sociais só falam de trabalho. Nesse momento não é importante você, como artista, se posicionar contra o governo?

Acho que sou muito clara. Em 30 anos de vida pública, não deixei muitas dúvidas. Apoiei campanhas pela paz, Direitos Humanos, preservação da Amazônia. Mais do que vocalizar nesse momento em que todo mundo está gritando, e ninguém quer se ouvir, prefiro dar espaço para cura. Essa vacina musical.

E você nunca foi uma pessoa da internet, né?

Meu motivo de vir a público é a música. Por isso que, depois de dois anos em silêncio, reativei minhas redes sociais. As pessoas têm de ler seus livros, ouvir suas músicas, não quero incomodar com informações não relevantes. Não tenho vaidade de querer aparecer. Não tem jeito certo. Tem o jeito de cada um. E o meu jeito é esse. Sou coerente há 30 anos.

Marisa Monte Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA

Como foi ficar com dois filhos em casa na pandemia?

O Mano ( filho de seu relacionamento com Pedro Bernardes ) perdeu o último ano de escola presencial e começou a faculdade de Design toda on-line. Ele só conhece os colegas pela tela. Mas, por outro lado, a tecnologia joga a favor, ele e os amigos interagem muito. Já a Helena ( sua filha com Diogo ) voltou para a aula presencial há menos de dois meses, depois que os professores foram vacinados. Nós somos uma família colaborativa, então todo mundo cozinha, todo mundo lava a louça. A pandemia os amadureceu no que diz respeito à vida real. E ficar mais tempo com eles foi a melhor parte.

Você e seus filhos começaram a nadar juntos?

Isso tem três meses. Duas vezes por semana, conseguimos ir juntos para o clube. É uma delícia, aquele mundo azul, onde telefone não toca. Eu já tinha nadado grávida, tenho minhas fases nadadora.

Marisa Monte Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA

Vocês escutam música juntos? Mano e Helena têm gostos musicais parecidos com o seu? Ouvem Marisa Monte? Você já disse, certa vez, que não ouvia as próprias músicas.

Eu me escuto pra caramba. A trabalho ou no Uber, no shopping, no restaurante. As músicas estão no mundo. Agora se for ouvir um disco em família, dificilmente vou pegar um meu. Pode até acontecer, para mostrar para os meus filhos alguma música que eles ainda não conheciam. Mas, no geral, o Mano escuta muita música antiga, Noel Rosa, Mario Reis, Francisco Alves. Nesse sentido, me identifico bastante com ele, que também curte jazz, Novos Baianos, Raul Seixas. Já a Helena gosta de Olivia Rodrigo, Billie Eilish, vou conhecendo cantoras novas através dela.

Eles cantam?

O Mano é mais visual, herdou o lado Bernardes, mas assovia afinadamente e improvisa qualquer melodia. E a Helena tem 12 anos, ? Canta como toda menina da idade dela. É uma criança, ainda não dá para afirmar se vai ser cantora. Mas gosta.

Ainda não possível dimensionar o impacto da pandemia para essa geração que acabou privada de liberdade. O que acha que acontecerá com eles?

Tenho fé e confio. Acho que eles vão dar o jeito deles. Eu me preocupo muito é com as crianças do Brasil pós-pandemia, pois haverá um déficit educacional enorme por esse distanciamento da escola. A perda, para quem não conseguiu ir para o on-line, por não ter recursos ou um computador, será enorme.

Carlos, seu pai, teve influência na sua paixão pela música. Como está o contato de vocês na pandemia?

Meu pai adora música, é pesquisador e está sempre descobrindo novidades do passado. Ele me ensinou a amar a cultura popular, a Portela e seus valores. Durante a pandemia, por conta dos riscos, estivemos juntos somente duas vezes, mas falamos sempre, muito e sobre tudo, graças à tecnologia.

Marisa Monte Foto: LEO AVERSA
Marisa Monte Foto: LEO AVERSA

A pandemia mostrou para todo mundo que não temos o controle de nada. Você acha que mudou de alguma forma? Ficou menos controladora?

Eu sou organizada, gosto de uma certa ordem. Mas a gente não tem controle de nada, isso é uma ilusão. Com 18 anos, não era tão organizada. Fui aprimorando, criando técnicas. Mas sobre os impactos da pandemia, acho que ainda vou demorar a digerir. Nunca fiquei tanto tempo em casa, nunca fiquei tanto tempo sem fazer um show, sem pegar um avião.

E os novos planos? Vamos ter que esperar mais dez anos para ouvir novas inéditas?

Acho que não. Mas existe o tempo das coisas. E eu não tenho esse controle ( risos ).