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Livro mostra a força política e estética de empresas de cosméticos fundadas por pessoas negras nos anos de segregação nos EUA

Professora da UFRJ, Giovana Xavier transformou pesquisa feita para tese de doutorado em Nova York em sua mais nova obra
Giovana Xavier transformou tese de doutorado em livro Foto: Amanda Neri
Giovana Xavier transformou tese de doutorado em livro Foto: Amanda Neri

Viajar no tempo, conhecendo batons, perfumes, blushes e pós faciais, foi uma tremenda experiência, escreve Giovana Xavier, ao encerrar um dos capítulos de seu novo livro, “História social da beleza negra”. Em seguida, engata com o que está por vir nas próximas páginas: “É tempo de ver como a comunidade negra inventou o pressuposto de que ‘a beleza começa pela pele’”.

Na frase, ela cita o anúncio de uma empresa de cosméticos veiculado em 1929, nos Estados Unidos, para puxar o fio que conduzirá o leitor numa imersão por companhias do ramo fundadas por pessoas negras que promoveram uma revolução estética e política naquele país, entre 1890 e 1930. Histórias que se passam em meio às leis Jim Crow, que impunham a segregação racial em estados do sul neste mesmo período. “Há um senso comum que coloca a ideia de beleza num lugar de futilidade”, pondera a autora do livro, cujo lançamento está previsto para o próximo dia 16, pela editora Rosa dos Tempos. “Mas existe uma atuação da indústria cosmética afro-americana que faz parte da história do protesto racial negro por lá. É importante dar atenção a isso como um espaço de agenda política, de proteção e de coletividade a partir da beleza e do direito de manipular o corpo.”

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A obra parte da tese de doutorado defendida em 2012 por Giovana, que é professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Para produzi-la, ela passou um ano na New York University, entre 2008 e 2009, quando também fez uma série de pesquisas no Schomburg Center of Research in Black Culture, considerado o maior arquivo de história negra do mundo. Lá, deparou-se com publicações da imprensa afro-americana em que os anúncios de cosméticos lhe chamaram a atenção.

Madam C.J. Walker é um dos nomes mais célebres dessa cena Foto: Getty Images
Madam C.J. Walker é um dos nomes mais célebres dessa cena Foto: Getty Images

A investigação aprofundada sobre a produção de cremes clareadores para a pele e produtos para os cabelos revela, segundo a autora, algo bem maior do que “o desejo superficial de se tornar branco”, leitura tão difundida entre quem desconhece os meandros dessa cena. “Os anúncios da cosmética negra traziam uma narrativa de cuidado com a aparência juntamente com promessas de empregabilidade”, cita. “Não dá para tratar essa documentação como uma evidência de que as pessoas queriam se tornar brancas e ponto. Estavam produzindo uma noção de negritude que passa pelo direito de alterar a tonalidade da pele.”

Giovana também considera importante não se perder de vista o ambiente de extrema violência daqueles anos, em que os negros eram alvos frequentes de linchamentos. “Dentro desse contexto em que, se você olhasse torto para uma pessoa, podia ser amarrado a um poste, faz sentido pensar na possibilidade de transformar a pele em algo mais claro como uma medida protetiva.”

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O livro passeia por histórias como a de Madam C. J. Walker, pioneira em disseminar, por meio de seus produtos e publicidades, a importância do tratamento diário dos cabelos e da pele a partir de um discurso que unia autocuidado e progresso racial. “Ela era uma intelectual pública muito sagaz e criativa”, observa Giovana, sobre a empresária que viveu entre 1867 e 1919 e deu origem à série “Self made” (2020), da Netflix. Segundo a autora, além de promover uma afirmação estética, o negócio impactou a vida econômica de muitas mulheres negras como um caminho profissional. “Havia uma aposta nesses produtos como a possibilidade de construção de um outro horizonte, inclusive de emprego. Uma revendedora podia receber, em 1910, até US$ 130 dólares por mês (nessa época uma trabalhadora doméstica sulista ganhava US$ 0,25 por dia, segundo Giovana) .”

Madam C.J. Walker a bordo de seu próprio caroo Foto: Getty Images / NY Daily News via Getty Images
Madam C.J. Walker a bordo de seu próprio caroo Foto: Getty Images / NY Daily News via Getty Images

Outro nome explorado na obra é o da empresária Annie Minerva Turnbo Malone, proprietária do Poro Hair & Beauty Culture, que viveu entre 1869 e 1957. A companhia fomentou a primeira instituição de beleza para estudo e ensino da cosmetologia negra nos Estados Unidos, e sua sede chegou a funcionar como um grande centro cultural. Já o Instituto Kashmir, que oferecia tratamentos estéticos, é lembrado pela inovação ao trazer a Rainha do Nilo em suas propagandas. “Posicionar Cleópatra como símbolo africano da beleza feminina foi uma forma de pautar, no jornalismo ativista, as origens negras do Ocidente. Já que a rainha era africana, as mulheres de cor eram, por direito, as donas de uma beleza autêntica”, escreve Giovana.

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Transformar uma pesquisa como essa em livro, reconhece a autora, é a sagração de uma conquista ainda pouco frequente entre os acadêmicos brasileiros. “Quando era estudante de doutorado, não imaginava que fosse fazer uma tese sobre a história dos Estados Unidos. Temos uma tradição de pesquisadores norte-americanos estudarem o Brasil, mas o inverso não se repete com a mesma frequência”, observa.

Catálogo da Madam C. J. Walker Company de 1929 Foto: Hagley Museum and Library
Catálogo da Madam C. J. Walker Company de 1929 Foto: Hagley Museum and Library

Doutora em história negra no Brasil, a professora Martha Abreu, do Departamento de História da UFF, posiciona o livro de Giovana como uma obra “que faltava”. “É uma contribuição inédita e original, num momento em que os historiadores têm buscado mostrar as várias lutas contra o racismo”, destaca.

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Do mesmo jeito, a jornalista e influenciadora Luiza Brasil, que assina o prefácio, lembra que, embora a história americana seja o foco central do livro, o conteúdo não deixa de estabelecer pontes com o Brasil. Não por acaso, o epílogo traz a curiosa imersão tropical da esteticista Anita Pattu Brown, de Chicago, que se encantou com “segredos brasileiros”, no final do século passado. “Precisamos debater o nosso lugar de protagonistas na construção de imagem na moda e na beleza e também de pensadoras desse novo momento de fala e de pertencimento da população preta”, diz Luiza, numa afirmação que faria vibrar Madam C. J. Walker. A americana, certa vez, gabou-se de sua trajetória em um discurso: “Construí minha própria fábrica na minha própria terra”.