Ela Gente

Luana Génot: O samba cura

Ouso dizer que talvez seja um dos momentos onde é possível ecoar por mais tempo na mídia e pelo mundo as nossas grandes urgências

O Desfile das Campeãs foi ontem e ainda não aprendi dizer adeus para o inusitado carnaval de abril. Podemos dizer agora que o ano já começou? Ou seria recomeço?

Tão gostoso finalmente voltar a viver de pertinho a Sapucaí. Especialmente após anos intermináveis de uma pandemia aguda e letal, que não acabou totalmente e ainda requer atenção.

Por ora, quero celebrar a felicidade de reencontrar amigos, de fazer outros tantos e poder abraçar as pessoas. Derramei-me em lágrimas na Avenida. Foi como se fosse a primeira vez.

Como não se emocionar com a abundância e a riqueza de detalhes de cada carro ou fantasia feitos por tantas mãos dedicadas ao “maior espetáculo da terra”? Como diria Joãosinho Trinta, “o povo gosta de luxo”!

Como não vibrar com a energia da senhora cadeirante passando com o enredo na ponta da língua ou com o moço que empurra o carro alegórico com samba no pé?

Oxigeno-me com a resistência da oralidade presente nos enredos, ecoados pela multidão, com suas letras, muitas em Iorubá. E que para muitos é um exercício necessário, mas ininteligível pelo apagamento do idioma africano do nosso ensino e que precisa ser revisto.

Oxigeno-me com a honrosa e devida reverência às histórias dos orixás, demonizados pela nossa intolerância religiosa de cada dia que precisa ser combatida. Ao serem ecoados pela multidão, eles se eternizam e resistem ainda mais fortalecidos apesar dos tempos em que vivemos.

Oxigeno-me por cada enredo que conta o protagonismo dos negros e dos indígenas na luta contra o racismo e o genocídio. Luta que deve e precisa ser de todas as pessoas. Ouso dizer que talvez seja um dos momentos onde é possível ecoar por mais tempo na mídia e pelo mundo as nossas grandes urgências.

Infelizmente, ainda vejo mais menções e consciência sobre a pauta antirracista nas letras dos enredos das escolas de samba do que nas falas dos pré-candidatos à presidência. Isso sim precisa mudar. Eu e você podemos cobrar que não adianta só cantar no carnaval, precisa valer no dia a dia também.

Ainda vejo mais negros puxadores de samba do que entre os jurados. No carnaval passado, tivemos menos de 10% com o poder da decisão e neste não foi muito diferente.

Mas tenho fé no samba. Ainda que a luta seja árdua, o samba cura e faz sonhar. E junto com os votos de “Ano Novo” ou do recomeço pós-carnaval, peço a Deus e aos orixás que o samba nos dê força para reverter a lógica da desigualdade.

Sonho com o dia em que pessoas negras e indígenas também possam ter direito ao pleno lazer e não sejam aquelas que somente trabalham arduamente nos empregos informais mal pagos, exaustivos, sem direito trabalhista e sem poder exaltar suas escolas em paz.

Sonho que aqueles que entoam enredos antirracistas sejam capazes de convertê-los em ações concretas ao longo do ano.

Sonho o sonho de nossos ancestrais de que pessoas negras e indígenas possam ser mais do que uma inspiração com suas estéticas e culturas. Que sejam aqueles que também detenham o poder das canetas deste país ganhando cada vez mais protagonismo e poder para além do carnaval.