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Maitê Proença estreia peça on-line em que aborda seu drama familiar

'As minhas pessoas foram morrendo todas e todas de forma trágica', diz a atriz, que apresenta o monólogo 'O pior de mim', com texto de sua autoria, dia 9, no Teatro Petra Gold
Maitê Proença: monólogo Foto: Ana Branco/Agência O Globo
Maitê Proença: monólogo Foto: Ana Branco/Agência O Globo

No fim de julho, Maitê Proença recebeu um telefonema da atriz Ana Beatriz Nogueira, idealizadora e curadora, ao lado de Andre Junqueira, do projeto Teatro Já, que marca a reabertura do Petra Gold com uma programação de peças executadas no palco e transmitidas on-line. “Ela me perguntou se eu teria um texto inédito”, conta. A partir daquele momento, a atriz e escritora começou a pensar no que caberia abordar no contexto pandêmico. “Falar sobre o confinamento não seria novidade. Queria um negócio que fosse para sempre e arrebatasse as pessoas.” Seguindo essa linha de pensamento, sentiu vontade de investigar a fissura que o público tem em assistir a programas como o “BBB”. “Fiquei me questionando por que as pessoas querem tanto olhar para a vida do outro na sua intimidade mais prosaica e também o motivo de gostarem do Instagram, uma febre universal, em que todos estão sempre lindos”, diz Maitê. “Decidi realizar algo que tivesse a ver com esse voyeurismo . Mas eu só poderia fazer pela verdade”, explica. “Então, em vez de mostrar onde sou linda, como tenho um monte de amigos e tudo que deu certo, quis revelar onde tropecei, sofri e achei que ia morrer. Está tudo insinuado ali.” Para conceber o texto em 20 dias, ela resgatou 150 páginas, escritas bem antes da pandemia, e “fez uma costura”. Assim nasceu o espetáculo “O pior de mim”, que estreia quarta-feira, 9 de setembro, às 17h, e tem ainda mais três sessões: dias 16, 23 e 30 do mesmo mês. A direção é de Rodrigo Portella.

Maitê em cena: catarse Foto: Ana Branco/Agência O Globo
Maitê em cena: catarse Foto: Ana Branco/Agência O Globo

No monólogo, Maitê relata, de maneira visceral, pedaços de sua tragédia particular — em 1970, o pai, o procurador de Justiça Augusto Carlos Eduardo da Rocha Monteiro Gallo, matou por ciúmes, a facadas, a mãe, a professora Margot Proença Gallo, em Campinas (SP). A futura atriz tinha, à época, 12 anos. Em 1989, seu pai se suicidou; na sequência, seu irmão adotivo também tirou a própria vida. “As minhas pessoas foram morrendo todas e todas de forma trágica. O primeiro trauma repercutiu para todos os lados”, analisa. Depois da morte da mãe, ela morou num pensionato luterano, abrigou-se na torre de uma igreja, estudou em Paris e colocou o pé na estrada — viajou pela Europa e pela Ásia, de carona, ao lado do primeiro namorado. Em 1979, estreou na TV.

Maitê Proença e a mãe, Margot Foto: Arquivo pessoal
Maitê Proença e a mãe, Margot Foto: Arquivo pessoal

Com o espetáculo, ela pretende ressoar nas cicatrizes de quem nem sabe tê-las. “Espero que, ao falar dos meus tropeços e dos lugares em que coloquei muros desnecessários, o público se reporte aos mesmos locais de suas vidas. Tem gente que vive se defendendo e que morre sem olhar para dentro e para as próprias feridas.”

Apesar da dramaticidade do ocorrido quando era ainda uma menina, Maitê seguiu em frente sem vestir o papel de vítima. Ela também resguardou a história familiar durante 26 anos de vida pública. “A piedade não é algo para ser vendido nem negociado. Queria que vissem a atriz trabalhando, assim que precisava que fosse. E, ao mesmo tempo, lidava com essas questões internamente.”

Maitê: linda desde sempre Foto: Arquivo pessoal
Maitê: linda desde sempre Foto: Arquivo pessoal

Porém, em 2005, numa tarde de domingo, num programa de TV, o drama de Maitê adentrou, sem pedir licença e à sua revelia, milhões de lares brasileiros. “A história não é só minha. Então, eu não me sentia no direito de abri-la. Naquele dia, minha filha, Maria, que estava na coxia, só a conhecia por alto, e foi um choque.”

Maitê faz questão de afirmar que mais importante do que esse episódio, totalmente superado, é o que ela fez a partir dele. “Precisei, na sequência, dar a minha versão. Foi aí que escrevi o livro ‘Uma vida inventada’, em que misturo ficção com elementos autobiográficos”, comenta. A atriz também foi uma das autoras, em parceria com Luiz Carlos Góes, da premiada peça “As meninas”, que narra o velório de uma jovem mãe assassinada pelo marido. “Todas as mulheres da família saem do caixão e tem uma grande discussão sobre o homem que matou. Não deu para eu atuar. É um espetáculo para rir e chorar”, resume.

Atriz na adolescência Foto: Arquivo pessoal
Atriz na adolescência Foto: Arquivo pessoal

Para lidar com os monstros do passado, que “sobrevivem a tudo”, Maitê não hesitou, ao longo das décadas, em mergulhar em técnicas, religiões e doutrinas. “Sou investigativa e já rodei o mundo em busca disso. Fiz análise, fui para o candomblé, tomei Daime durante três anos”, lista. “O meu objetivo era tirar todas as cascas, virar a pessoa mais pura e chegar à essência da essência. Mas quando as dores acontecem em idade tenra, elas não curam. A gente não está pronto”, afirma. Mas a atriz prefere não mensurar traumas nem medir cicatrizes. “O acúmulo de pequenos eventos dramáticos também torna as pessoas machucadas e cria armaduras na personalidade”, constata. “De vez em quando, observo a vida aparentemente suave de alguém e me pergunto o que fez aquela pessoa ficar tão ferida”, observa. “Somos todos muito machucadinhos.”

Nessa sede pelo autoconhecimento, mas acreditando já ter avançado na elaboração dos sentimentos profundos, partiu, em 2017, para um retiro na Índia, comandado por um psiquiatra californiano e uma “ucraniana linda”. A passagem, descrita em detalhes no monólogo, fez com que ela se deparasse com uma inesperada raiva do tamanho do universo. “Fiquei numa sala toda acolchoada, preparada para doido. Passei cinco dias lá socando, tive incontinência urinária de tanta coisa que soltei. A violência do que aconteceu foi, ao mesmo tempo, restauradora”, narra. “Não tinha a menor ideia de que ainda havia tanta raiva dentro de mim. Ele, o psiquiatra californiano, me fez ir aonde estava tudo guardado desde sempre, e não tinha saído por meio do Daime, da análise, de nada.”

Maitê Proença Foto: Claudio Carpi
Maitê Proença Foto: Claudio Carpi

A culpa também se faz presente na trajetória que ela aborda corajosamente no palco. “Dá uma baixa de autoestima porque a pessoa não se sente merecedora”, avalia a atriz. “Aí ferra tudo, ainda mais para quem não tem temperamento de ficar sentado na sarjeta chorando. Porque, ao levantar, sacudir a poeira, dar a volta por cima e ficar alegríssimo, vêm a culpa e o seguinte pensamento: ‘Você poderia ter feito alguma coisa. Por que você não evitou aquilo?’ Como se fosse possível”, explana. “Mas quando a gente é criança tem a impressão de ser o centro do mundo e, sendo centro do mundo, acha que deveria ter evitado. Por isso, é preciso ter cuidado na educação para que as crianças entendam que não são tão centrais assim”, analisa. Maitê ressalta ter recebido princípios sólidos na infância que foram determinantes na caminhada. “Meus pais fizeram essa cagada, mas me deram valores éticos e morais muito firmes. Isso segurou toda onda.”

Com as antenas ligadas nos sinais emitidos pelo mundo contemporâneo, a escritora reflete sobre o aumento de feminicídios e da violência doméstica. “Se há uma escravidão que ainda permanece é a da mulher, principalmente em alguns países árabes e africanos”, diz. “Nas guerras, as mulheres e as crianças são sempre as mais afetadas, e nós, mulheres, não gostamos de guerras”, emenda. A atriz acredita que o mundo será, cada vez mais, liderado por figuras femininas. “Temos características distintas, como a conciliação”, observa. Sobre a nova onda de feminismo, ela endossa a importância de trazer o assunto à baila. “Mas é legal que a geração jovem saiba que todos esses movimentos têm história. No perfil do meu Instagram, já escrevi sobre 220 pioneiras, a primeira aviadora, a primeira enfermeira etc.”

Aos 62 anos, Maitê reage à “histeria pela juventude eterna” sem negar o encanto dos primeiros anos. “Não adianta fazer apologia à velhice, ninguém gosta de ver a pele despencando, ter dores, essa parte é horrorosa”, opina. “Porém, existe um entendimento que só vem com os anos, a noção de que não é possível seduzir o mundo inteiro, e tudo bem. Gasta-se menos tempo com coisas impossíveis e se aprende a dizer não”, pondera a atriz, que acaba de ser avó. “É muito mágico e diferente de ser mãe”, descreve. “Eu amei a Manuela por causa do sentimento pela minha filha, Maria, que dobrou. Então foi um amor em looping. Eu cheguei à Manuela pela Maria, e estou indo gradualmente. É um amor sereno. A cada dia que passa, eu amo mais a minha neta”, derrete-se.