Ela Gente

Mulheres negras conquistam espaços como influenciadoras digitais

Personalidades como Alexandra Loras e MC Carol debatem racismo e feminismo
Vozes poderosas: Alexandra Loras, Djamila Ribeiro e Magá Moura Foto: Fotos de divulgação
Vozes poderosas: Alexandra Loras, Djamila Ribeiro e Magá Moura Foto: Fotos de divulgação

RIO - Desde que se mudou do Morro do Preventório, comunidade onde foi criada em Niterói, para a região de Pendotiba, ocupada pela classe média da cidade, MC Carol sentiu o preconceito bater mais forte.

— Agora moro numa rua onde os negros vão só para trabalhar. Entendi, então, que muitos preferem que a gente fique longe, no morro — reflete a cantora, de 24 anos. — Outro dia, estava entrando em casa e um vendedor me ofereceu uma vassoura. Quando respondi que não queria, ele disse: “pergunta para a patroa se ela não precisa”.

Mas Carol não é de abaixar a cabeça para esse tipo de situação. Nem ela, nem Alexandra Loras, nem Djamila Ribeiro, nem Magá Moura. Juntas, mulheres como elas estão formando uma sólida rede de influenciadoras digitais, cujo elo entre os discursos é justamente levar a figura negra feminina a espaços e protagonismos renegados ao longo de anos.

— Olhando por cima, podemos pensar que influenciadora é quem tem muitos seguidores. Mas elas vão muito além disso, criando referências positivas sobre ser negra, o que é muito importante diante da falta de modelos do tipo nos meios midiáticos hegemônicos — observa Silvana Bahia, diretora de projetos do Olabi, organização focada em inovação social e tecnologia.

IMAGENS INSPIRADORAS

A ex-consulesa da França em São Paulo Alexandra Loras é uma das personalidades que endossam esse coro. Desde que criou sua conta no Instagram, há cerca de um ano, ela começou a compartilhar imagens de pessoas negras que inspiram protagonismo. Estão lá publicidades, produções artísticas, ensaios de moda e, claro, imagens do próprio cotidiano de Alexandra.

— Buscava fotos com esse mote no Pinterest e as postava no Instagram. Foi quando comecei a me tornar uma influenciadora digital. Desde então, tenho sentido uma troca de energia muito interessante. Recebo muitas mensagens de pessoas dizendo que isso as ajuda — conta ela, que já arrebatou quase 30 mil seguidores.

RG - Caderno Ela - Mc Carol Foto: MC Carol fala para meio milhão de seguidores no Instagram / Divulgação
RG - Caderno Ela - Mc Carol Foto: MC Carol fala para meio milhão de seguidores no Instagram / Divulgação

Por trás da curadoria feita por Alexandra, há uma forte inquietação: como já disse em várias entrevistas, ela considera o Brasil um dos países mais racistas do mundo. Mudar isso, é claro, passa pela representatividade.

— Entrar numa loja de brinquedos no Brasil e encontrar apenas duas princesas negras em meio a milhares de bonecas brancas é um problema grave. Estamos falando de um país que não se reconhece e de crianças que são criadas dentro de uma narrativa em que os negros não existem — discorre Alexandra.

Mas além de influencer, ela também é seguidora e adora ver o sucesso das meninas negras nesta seara. Uma de suas favoritas, inclusive, é Magá Moura. Dona do perfil “magavilhas” no Instagram, esta baiana de Feira de Santana tem respeitáveis 180 mil seguidores e já garantiu lugar cativo nos eventos de moda internacionais mais badalados.

— Por muito tempo, não tínhamos quase ninguém atuando neste universo. Até eu surgir, pelo menos, não cabia nem em uma mão o número de mulheres negras na posição de bloggers ou influenciadoras. Agora há uma infinidade. E isso é maravilhoso! Quero mais e mais meninas se inspirando umas nas outras e construindo suas narrativas. Assim, elas se ajudam a superar problemas de autoestima e a se amarem — diz Magá.

Dona do site Mequetrefismos.com e do perfil no Instagram que leva o mesmo nome, a niteroiense Luiza Brasil, de 29 anos, também virou figura tarimbada em negócios de moda. Ela trabalha com muitos produtos do segmento luxo e, ao refletir sobre como poucos negros acessam este ambiente, fez da sua identidade visual um manifesto.

— Jamais deixei que estes espaços me embranquecessem. Sempre respeitei minha origem e essência — orgulha-se ela, que costuma ostentar tranças e penteados black power nos seus “looks do dia”. — Considero a moda uma grande ferramenta de expressão. Estudo muito a minha ancestralidade. Então, acho que isso aparece naturalmente no meu visual.

RG - ELA - Luiza Brasil Foto: Luiza Brasil faz sucesso no mundo da moda / Divulgação
RG - ELA - Luiza Brasil Foto: Luiza Brasil faz sucesso no mundo da moda / Divulgação

Luiza sempre teve essa consciência em função da bagagem cultural que recebeu dos pais. Mas ela entende como isso nem sempre é fácil para as meninas negras:

— Não tem como se esquecer dos concursos de paquitas, em que só meninas brancas eurocêntricas tinham vez. A gente teve uma mídia muito cruel com a nossa beleza. Achávamos que éramos feias, com cabelo esquisito e com um tom de pele inadequado.

O cabelo, diga-se de passagem, é um ponto sensível nessa discussão. Hoje influenciadora e com quase 800 mil seguidores no Instagram, a cantora, atriz e dançarina Lellêzinha, do Dream Team do Passinho, alisou os fios até os 14 anos.

— Tive uma crise capilar e não podia mais colocar química na cabeça. Só então pude conhecer meu cabelo de verdade. Ao passar por isso, você ganha uma força e uma personalidade incríveis — descreve.

E adivinha uma das situações que fazem Lellêzinha entender que hoje ela ocupa o lugar de influenciadora?

— Às vezes, estou caminhando na rua e uma mulher me para e diz: “minha filha já fala que quer ter um cabelo igual ao seu” — conta a jovem, de 20 anos.

Candy Mel, da Banda Uó, também faz a dobradinha cantora e influenciadora. E ela adora o posto.

— Gosto de passar uma mensagem de liberdade e possibilidades. Interesso-me por ressignificar padrões e me divirto com isso. Luto pela causa de mulheres trans e travestis, contra o racismo e o classismo. Não sou a favor do merecimento. Todo mundo merece — diz ela, sobre os temas que mais a sensibilizam.

RG - ELA - Lellêzinha Foto: Além de celebridade, Lellêzinha se tornou influenciadora / Divulgação
RG - ELA - Lellêzinha Foto: Além de celebridade, Lellêzinha se tornou influenciadora / Divulgação

E uma das coisas mais estimulantes das redes sociais, na opinião dela, é produzir debates de maneiras bastante variadas.

— Abro várias discussões e observo a resposta do público. Eles esperam uma comunicadora dura, que brigue e explique tudo. Mas gosto de usar figuras de linguagem. Sou amante do deboche, da minha sensualidade e da minha beleza. E isso causa um impacto. Nem sempre quem fala de assuntos sérios deve ser séria — questiona a cantora.

'QUEREMOS COEXISTIR'

Na opinião da publicitária e pesquisadora do grupo Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura da Universidade Federal da Bahia Thiane Neves, um dos pontos positivos do trabalho dessas mulheres é que cada uma tem fala e bagagem próprias. Com essa pluralidade, elas deixam o debate ainda mais rico.

— Dentro das suas perspectivas culturais, sociais e políticas, elas estão propondo novos marcos civilizatórios, evidenciando a necessidade de políticas públicas que sejam pautadas numa democracia não homogeneizadora — afirma.

Para a professora adjunta de Prática de Ensino de História da Faculdade de Educação da UFRJ Giovana Xavier, ter mulheres negras como formadoras de opinião pública é uma política de desensinamento do machismo e do racismo, os quais as naturalizam como criadas “que estão no mundo para servir”.

— Ser influenciadora relaciona-se com assumir um lugar de intelectual negra produtora de conteúdos e saberes que contribuem para que a sociedade brasileira se torne mais democrática em termos de representatividade, distribuição de conhecimento e de prestígio — define ela.

Mas se os ecos dessas vozes não param de romper barreiras, muitas resistências seguem persistentes do lado oposto, como reflete a mestre em filosofia política e feminista Djamila Ribeiro, que acaba de lançar o livro “O que é lugar de fala?” (Letramento).

A cantora da Banda Uó, Candy Mel Foto: Divulgação
A cantora da Banda Uó, Candy Mel Foto: Divulgação

— Percebemos um incômodo, sobretudo, de homens brancos em relação à visibilidade que temos ganhado, mesmo que isso seja muito pequeno perto de tudo o que eles têm. Afinal, eles ainda detêm o poder e são maioria em todos os espaços de visibilidade e privilégio no Brasil. A gente sente uma tentativa de nos classificarem como agressivas e não propensas ao diálogo — comenta ela. — Mas é uma falsa simetria tentar colocar como se partíssemos dos mesmos pontos e espaços, porque as vozes deles ainda são as que aparecem legitimadas. E o que a gente faz é tentar trazer um contraponto a isso. Queremos coexistir dentro desse espaço que ainda é negado.