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Por Marcia Disitzer


Rosiska usa chemiseTatá Melgaço na Casade Antônia, calça GildaMidani, meias Lupo,sapatos Andrea Marques,acessórios Lívia Canutoe poltrona Kudasay porRicardo Fasanello naArquivo Contemporâneo   — Foto: Leo  Aversa. Styling  Lucas Magno F.
Rosiska usa chemiseTatá Melgaço na Casade Antônia, calça GildaMidani, meias Lupo,sapatos Andrea Marques,acessórios Lívia Canutoe poltrona Kudasay porRicardo Fasanello naArquivo Contemporâneo   — Foto: Leo Aversa. Styling Lucas Magno F.

É na casa em que nasceu, na Gávea Pequena, no Rio, cercada de Mata Atlântica por todos os lados, que mora Rosiska Darcy de Oliveira. O endereço da escritora, jornalista, professora, advogada e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) tem semelhanças com a sua vida e obra. A singularidade do espaço físico em que habita, amplo e, ao mesmo tempo, intimista, dialoga com a imensidão do seu pensamento e da sua visão sobre o mundo e, principalmente, sobre as mulheres.

Uma das principais feministas do Brasil, Rosiska, de 78 anos, encontra-se em plena atividade. Está à frente da reestruturação da centenária Revista Brasileira, da ABL, que será lançada e apresentada por ela na quarta-feira, às 19h, na Livraria da Travessa do Leblon. “Está de roupa nova. Traz, por exemplo, a seção ABL: Portas Abertas e entrevistas com Fernanda Montenegro, Sebastião Salgado e Gilberto Gil”, diz. “A ABL é um centro importante de resistência à destruição da cultura.” Também escreve o décimo primeiro livro cujo tema central é o medo. “É sobre o obscurantismo, que tem as mulheres como alvo. A escalada da violência contra as mulheres corresponde à nossa escalada pela liberdade.”

Chemise e gola Tatá Melgaço na Casa de Antônia e pulseira Lívia Canuto   — Foto: Leo Aversa
Chemise e gola Tatá Melgaço na Casa de Antônia e pulseira Lívia Canuto — Foto: Leo Aversa

Durante duas horas, em entrevista feita presencialmente, entre café, biscoitinhos e ao som dos passarinhos do seu jardim, Rosiska falou sobre o exílio na ditadura militar, o movimento feminista e as mulheres em movimento, a importância do feminismo negro, os 54 anos de casamento, política e o fundamental direito de escolha — que abrange a descriminalização do aborto e a liberdade de encerrar a própria vida. “Nosso corpo nos pertence”, afirma. A seguir, os melhores trechos.

Você foi exilada na ditadura militar. O que guarda dessa página infeliz da nossa História?

A ditadura militar foi um horror, uma época de trevas. Felizmente, conseguimos dar a volta por cima e restabelecer a democracia, mas foram 20 anos. Sou casada com um diplomata (Miguel Darcy de Oliveira) e estava com ele em Genebra. No Brasil, a tortura tinha virado modo de governo, vários amigos foram presos e torturados. Fizemos, então, uma denúncia. O que era para ser uma estada virou exílio. O exílio, em um primeiro momento, é a perda do chão. Não tinha documentos, dinheiro, coisa alguma. Por outro lado, sentia a liberdade de ter feito a coisa certa. Lá, me tornei professora da Universidade de Genebra. Fiquei dez anos sem voltar ao Brasil, mas nunca me arrependi de nada.

Calça e camisa Guto Carvalhoneto, casaco Ocska na Casa de Antônia e pulseira Lívia Canuto — Foto: Leo Aversa
Calça e camisa Guto Carvalhoneto, casaco Ocska na Casa de Antônia e pulseira Lívia Canuto — Foto: Leo Aversa

No exílio, conheceu o educador brasileiro Paulo Freire e o biólogo e psicólogo suíço Jean Piaget. O que esses encontros representaram na sua vida?

Assim que meu exílio foi declarado, tocou o telefone na casa de estudantes em que morava. Do outro lado da linha, a voz de um homem: “Meu nome é Paulo Freire e gostaria de te convidar para almoçar na minha residência”. Ele também estava exilado. Este foi o primeiro gesto que alguém fez na minha direção. Paulo e a sua família se tornaram a minha família. Trabalhamos juntos por 15 anos. Esse homem que dizem ser um perigoso comunista era profundamente católico, devoto de Santa Terezinha. E, como bom cristão, não se conformava com a injustiça social. Já o Piaget, fui sua aluna nos seus dois últimos anos da faculdade. Velhinho, chegava de bicicleta. Usava boina, capa e entrava na sala de aula com uma corte de assistentes que tiravam a tal capa. Piaget me introduziu ao pensamento científico e à cultura global. Foi a pessoa mais brilhante que conheci na vida.

Como reage ao ódio de bolsonaristas contra Paulo Freire?

Em primeiro lugar, com imenso desprezo. Em segundo, com raiva. Raiva contra a infâmia e, sobretudo, contra o mal que fazem ao Brasil. Paulo é um orgulho do nosso país, fez com que o Brasil fosse respeitado lá fora, é um grande homem. No entanto, o tratamento que esse governo dá a ele é de um bandido, de um proscrito.

Quais eram as principais demandas das feministas na década de 1970?

Poder falar. Na minha geração, era preciso ter coragem para se falar em público. Havia uma humildade no falar feminino, ninguém prestava atenção. Surgiram, em diversos países, grupos de consciência formados por mulheres, um dos fundamentos do movimento feminista. Até então, não se conversava sobre a vida privada. Nesses papos, passaram a sair as crises conjugais, os amantes, os abortos, eram confidências politizadas. Apareceu uma realidade do mundo feminino que só existia na literatura ou na psicanálise, o discurso secreto. Outras questões dominantes continuam parecidas com as de hoje, o direito pelo corpo, que envolve sexualidade e aborto, e a violência contra a mulher.

Nos Estados Unidos, paira a ameaça do Supremo anular a norma que legaliza o aborto. No Brasil, o assunto está fora de pauta e provoca reações inflamadas. Como analisa esse panorama?

Quando era presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher disse, no congresso, quando quiseram tirar o direito do aborto no caso de estupro, que não haveria força humana que me obrigasse a ter o filho de um estuprador e que, se essa lei não existisse, faria desobediência civil. Se voltarem atrás, direi a todas brasileiras que façam desobediência civil. O que está em jogo é manter a dominação sobre o corpo feminino. A contracepção fez mais do que todo movimento feminista. Porém, se falha, a dominação reaparece. Ora, isso não é aceitável, faz parte do direito das mulheres a decisão de ser ou não mãe.

Rosiska Darcy de Oliveira — Foto: Leo Aversa
Rosiska Darcy de Oliveira — Foto: Leo Aversa

Já fez aborto?

Fiz um. Foi uma decisão consciente. Não é uma decisão fácil para nenhuma mulher. Aliás, é muito difícil. Mas deve ser uma decisão livre e privada.

Sofreu preconceito por não ter tido filhos?

Preconceito não sei se é a palavra, mas perplexidade, certamente. No meu caso, foi uma questão biográfica. Passei muitos anos no exílio e quis ter uma vida independente. Eu e meu marido sempre fomos grandes viajantes. Nunca senti falta e tenho a sorte de ter um grande círculo amoroso dentro e fora da minha família.

Você está casada há 54 anos. Ao longo dessas décadas, testemunhou mudanças comportamentais e sexuais. Como encara a monogamia?

Em um casamento de tantos anos você se casa várias vezes. Não existe fórmula. Conversando com a Fernanda Montenegro, ela disse: “Revolucionárias somos nós”, em alusão aos nossos casamentos. O que persiste é o afeto e a cumplicidade.

Camisa Guto Carvalhoneto, sobretudo Mixed, pulseira Lívia Canuto, anel da mão direita Antônio Bernardo e anéis da mão esquerda acervo — Foto: Leo Aversa
Camisa Guto Carvalhoneto, sobretudo Mixed, pulseira Lívia Canuto, anel da mão direita Antônio Bernardo e anéis da mão esquerda acervo — Foto: Leo Aversa

Você afirma que, no passado, havia o movimento de mulheres e hoje, as mulheres em movimento.

Não é força de expressão, é uma verdade. Éramos uma minoria e fomos submetidas a todo tipo de arma, como a desqualificação. Éramos chamadas de horrorosas, histéricas e mal-amadas. Fiquei 30 anos no movimento, mas não queimei nem vi ninguém queimar sutiã. Queriam nos destruir, mas não demos a menor bola. Continuamos a nossa campanha. Hoje, todas as mulheres estão em movimento. A grande conquista foi o direito de escolha, de a de a mulher dizer como quer viver e assumir a autoria do feminino. Tenho uma amiga que tem sete filhos e eu não tenho nenhum. Nós duas fomos livres nas nossas decisões, e isso é tão mais feliz.

Numa live, disse ter recebido recentemente e-mails ameaçadores. como os interpreta?

É um fenômeno desse mundo sombrio e das sombras que ocuparam a internet. Escrevi por mais de 30 anos em jornais e sempre tive diálogo saudável com os leitores. Finalmente, comecei a receber e-mails do tamanho de cartas com insultos e ameaças. Certo dia, recebi um e-mail imenso e deletei. No dia seguinte, recebi outro com alguns parágrafos iguais ao que tinha recebido na véspera, escrito supostamente por outra pessoa. Percebi que eram escritos por robôs. É a perversão de um instrumento que na origem foi de liberdade, a internet. Contanto que não se agrida a honra de ninguém — essa é a fronteira — temos que ter o direito de escrever o que quisermos.

Acha que o feminismo dos anos 1970 excluiu as feministas negras?

A memória que tenho é que não excluiu, não houve desejo de exclusão. Essa ausência mais presente corresponde ao silêncio que havia sobre essa questão. A consciência aguda da questão do racismo no Brasil não existia, de fato. Foi trazida pelas mulheres negras. Evidentemente, a vivência delas é diferente. É interessante o lugar de fala. Vem desde o movimento feminista: “Eu falo enquanto mulher”. Tenho grande respeito por tudo que elas dizem. É alvissareiro. Djamila (Ribeiro, filósofa e escritora) e Chimammanda (Ngozi Adichie, escritora nigeriana) são símbolos importantes e pessoas de imenso talento no que fazem.

Qual é a expectativa para as eleições presidenciais?

Não ignoro como vai ser acidentado o caminho até lá. É uma eleição decisiva para a História do Brasil. O que está em jogo é garantir a democracia ou abrir as portas para que se acabe com ela.

No livro “Liberdade”, escreveu sobre as transformações na maneira que nascemos, amamos e morremos. Que mudanças foram essas?

O corpo ganhou centralidade política. Minhas esperanças de que a democracia não volte para trás estão no fato de que as revoluções ocorridas no fim do século XX e no século XXI repercutiram no corpo. E o que se dá na intimidade, não retrocede. A começar pelo nascimento. Hoje é possível ter ou não filhos, quando e com quem desejar. Depois, o amor. Casa-se se quiser, se não quiser, não casa. Escolhe-se com quem casar com homem, mulher, pessoas mais velhas, mais jovens. É uma abertura existencial fascinante. Depois, o envelhecimento. O meu não tem nada a ver com o da minha mãe. Nunca fiz plástica, botox nem pintei o cabelo. Só passo creme. Mas não faço disso uma teoria. Quem se sente mal na pele, que faça quantas plásticas quiser. Sou uma libertária. Não quero me meter na vida de ninguém e que ninguém se meta na minha.

E a última das liberdades seria poder escolher o momento da própria morte...

Qualquer pessoa que acompanhou um doente terminal sabe a razão disso. Alain Delon anunciou recentemente que decidirá a sua própria morte. Ele não foi o único: dois religiosos, o teólogo alemão Hans Küng e o bispo sul-africano Desmond Tutu também. A vida é um direito, mas não é um dever. O corpo nos pertence. Não tenho medo da morte, mas do que a precede, não quero sentir dor.

Calça e camisa Guto Carvalhoneto, casaco Ocska na Casa de Antônia e pulseira Lívia Canuto — Foto: Foto Leo Aversa Beleza: Bruno Alsiv por Bioderma. Set design: Ayla de Oliveira. Assistência de fotografia: João Dantas. Assistência de beleza: Jessica Rodrigues. Assistência de set design: Macarena Roca. Produção de moda: Faby Pernambuco. Agradecimento: Empório Jardim.
Calça e camisa Guto Carvalhoneto, casaco Ocska na Casa de Antônia e pulseira Lívia Canuto — Foto: Foto Leo Aversa Beleza: Bruno Alsiv por Bioderma. Set design: Ayla de Oliveira. Assistência de fotografia: João Dantas. Assistência de beleza: Jessica Rodrigues. Assistência de set design: Macarena Roca. Produção de moda: Faby Pernambuco. Agradecimento: Empório Jardim.

Teve algum dilema em ingressar na ABL por ser uma libertária?

Não. É uma honra estar numa casa fundada por Machado de Assis e que abrigou Guimarães Guimarães Rosa, João Cabral, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, pessoas a quem admiro. A ABL parece mais tradicional do que é. Acabou de eleger democraticamente pessoas que são símbolos de liberdade, Fernanda e Gil. Não é um grupo de velhinhos tomando chá.

Como será a nova Revista Brasileira?

A Revista Brasileira, a mais antiga do Brasil, será relançada na quarta-feira, às 19h, na Livraria da Travessa do Leblon. Mudou todo projeto gráfico. Cada número, quatro por ano, abordará um tema essencial para o Brasil. O primeiro será Amazônias (no plural). A Amazônia está sendo destruída e isso é um desastre sem precedentes. Entrevistei Sebastião Salgado, uma pessoa extraordinária, defensor da região e dos povos nativos. Chamei nomes de fora e de dentro da academia para escrever. Também entrevistei o Gil, sobre poesia cantada, e a Fernanda, sobre a paixão pelo teatro. Além disso, foi criada a seção ABL: Portas Abertas, que traz a programação cultural, excepcional e gratuita, da ABL.

Qual é o tema do seu próximo livro?

O medo. O obscurantismo tem raiz no medo da liberdade que as mulheres possam ter de escolha. A resistência à liberdade feminina é mais profunda do que poderíamos imaginar. Provoca medo e ódio, que se manifesta por meio da violência e do feminicídio. A escalada de violência corresponde à nossa escalada pela liberdade, que não está sendo aceita, sobretudo depois de movimentos como o #MeToo e o #EleNão.

Qual é o seu maior medo?

A perda de pessoas amadas. Isso vem muito com a idade. Tenho pavor de perder as minhas testemunhas.

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