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Por Eduardo Vanini


Laura Lima veste colete Nadruz, camiseta A.Niemayer na Pitanga e chapéu “Ninhos Comunais” (2022), da artista — Foto: Jorge Bispo
Laura Lima veste colete Nadruz, camiseta A.Niemayer na Pitanga e chapéu “Ninhos Comunais” (2022), da artista — Foto: Jorge Bispo

Para adentrar o universo de Laura Lima é preciso cruzar a fronteira da zona de conforto. Nada é entregue de mão beijada. Há sempre um emaranhado de ideias que exigem paciência e atenção dos observadores. Referenciada em algumas publicações como a primeira artista brasileira a ter obras adquiridas na categoria performance por um museu no país, no caso o Museu de Arte Moderna de São Paulo, ela sequer reconhece seus trabalhos como tal. “Até hoje, acontece de um documento ou outro chegar a mim referindo-se à minha obra dessa maneira. Quando ocorre, devolvo para a instituição”, diz a artista, mundialmente famosa pelos trabalhos “vivos”, em que pessoas viram matéria.

Com três décadas de carreira completados este ano, enquanto prepara uma retrospectiva para o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, prevista para março, a artista, de 51 anos, fala sobre isso sem qualquer alteração no tom de voz ou impaciência. Tem uma calma embebida na mineiridade de quem nasceu em Governador Valadares. Foi lá que aprendeu a questionar. Filha de uma socióloga e de um médico, cresceu num ambiente rico em debates políticos, ao mesmo tempo em que passava horas entretida com os livros sobre doenças do pai. Nesse mesmo contexto, experimentou uma virada de chave definitiva quando um de seus dois irmãos sofreu um surto psicótico. “A maneira como ele começou a lidar com a linguagem era bastante difícil, mas também fascinante, sem querer romantizar”, narra. “Você começa a perceber que a forma como constrói as ideias tem muitas fragilidades. E isso passou a ser um exercício cotidiano.”

Ainda na cidade mineira, Laura teve uma tão breve quanto proeminente carreira na dança. Aluna dedicada, chegou a substituir a própria professora e conceber apresentações. “Montei um espetáculo que se chamava ‘Dança das cores’. Imagine só! E nunca pensei que fosse me tornar artista visual”, comenta. Aos 16 anos, porém, desembarcou em solo carioca, onde concluiu a educação básica e começou a cursar Direito na PUC. A graduação ficou pelo caminho, quando se aprofundou na Filosofia, ciência na qual se formou pela Uerj. Nessa mesma época, numa viagem pela Europa, deu de cara com a arte contemporânea e viveu uma epifania. “Achei que estava ficando louca. Então, um primo disse: ‘Calma! Você não está louca. Você gosta de questionar’. Ele me apresentou ao Parque Lage e, na segunda aula, já comecei a produzir. Lembro-me de o professor João Carlos Goldberg dizer: ‘Não tem mais volta’.”

Memórias como essas são narradas ao longo de quatro horas de uma conversa iniciada no meio da tarde de uma sexta-feira. Entre uma anedota e outra, Laura vai e volta no tempo, passa um café e prepara um drinque com cachaça, maracujá e mel na cozinha de sua casa, numa simpática vila no Catete, na Zona Sul do Rio. Bem em frente ao imóvel está o seu ateliê, no qual posou para as fotos deste ensaio dias antes. O espaço, onde a artista aderiu ao regime semanal de quatro dias de trabalho, é um laboratório ritmado pelo fluxo intenso de assistentes com idades, gêneros e identidades diversas. Ela adora observar como as novas gerações exploram outras formas de existência. “É absolutamente maravilhoso quando se encontra trisais e pessoas que experimentam outras maneiras de felicidade. Isso é uma sociedade feliz.”

Um clima que diz muito sobre a sua própria produção, como observa Lisette Lagnado, curadora e co-organizadora, ao lado de Daniela Castro, do livro “Laura Lima on_off” (Cobogó). “As questões atuais já estão impregnadas na obra dela, porque a Laura não é uma pessoa que tem o ateliê como um lugar inacessível. É um lugar de trânsito”, comenta. A mesma abertura ao novo aparece refletida na galeria A Gentil Carioca, inaugurada no Rio em 2003 e com uma filial em São Paulo desde o ano passado, da qual a mineira é sócia ao lado dos também artistas Márcio Botner e Ernesto Neto. “Abrimos como um gesto político, numa época em que tudo estava sucateado”, recorda-se Laura.

A escolha por ocupar dois casarões na Saara, no Centro, portanto, se contrapõe à concentração de espaços do tipo na Zona Sul, e expoentes da nova geração, como Maxwell Alexandre e Marcela Cantuária, encontraram lugar cativo entre os representados por lá. Nos bastidores, uma forte amizade ganhou corpo. “Não consigo imaginar a Gentil sem a Laura”, afirma Ernesto. “Ela traz uma coisa do feminino que sinto como algo cada vez mais importante para a nossa sociedade e que será capaz de mudar até mesmo o eixo energético da Terra. É uma expressão brilhante disso.”

Laura desloca estruturas desde o começo da carreira. Em uma de suas primeiras exposições, no início da década de 1990, levou ao Paço Imperial um enorme tapete feito com luvas cirúrgicas usadas. O material, embora apresentasse marcas de sangue, havia sido desinfetado, mas isso não foi o suficiente para evitar que um visitante exigisse o fechamento do museu. Alegava que aquilo era “altamente infectante”. “Me ligaram correndo, porque não sabiam como resolver”, rememora a artista, em meio a risadas. “Ali, acho que comecei a dar problemas às instituições.” E não parou mais. Em 2018, numa exposição na Fundação Prada, em Milão, ela teve a ideia de colocar uma pintura na ponta de um pêndulo em movimento. Escolheu, para isso, uma tela de Salvador Dalí que estava no acervo da própria instituição, mas, por questões de segurança, não pôde usar a original e uma réplica foi encomendada. “Fomos visitar o copista e, no caminho, soube que a polícia local precisou ser avisada.”

As criações com pessoas são igualmente desafiadoras. “Dopada”, em que uma mulher dorme sob o efeito de sedativo, conectada à parede da galeria por um tubo de crochê, não foi exibida na Suécia por causa da legislação. O trabalho integra o mais conhecido grupo de obras produzido por Laura, chamado “Homem=carne/Mulher=carne”, em que pessoas (carne) são agregadas a outros objetos expostos sob instruções precisas da artista. Uma delas é “Puxador-paisagem (H=c/ M=c)”, em exibição no Inhotim, em Brumadinho. Nela, um homem nu puxa 7km de fitas presas às costas que vão do interior da galeria ao jardim, como se tentasse deslocar o mundo exterior.

A complexidade envolvida na aquisição de obras dessa natureza, por outro lado, não impediu que o nome da artista figurasse em acervos pelo mundo. Relações institucionais da Galeria Luisa Strina, que a representa em São Paulo (no Rio, isso é feito pela A Gentil Carioca), Flávia França lista alguns exemplos: “Ela está em coleções como Bonniers Konsthall, em Estocolmo, Instituto Inhotim e Museu Migros, na Suíça. O prêmio Bonnefanten, recebido em 2014, também possibilitou uma exposição no museu homônimo, na Holanda, e contribuiu para uma maior valorização no mercado.”

Além da mostra em Barcelona, Laura leva, no fim do ano, o seu “Balé literal” à Bienal de Oaxaca, no México. No trabalho, obras como as que aparecem neste ensaio surgem em movimento, suspensas por cabos. Uma exibição do tipo aconteceu em 2019 no Rio, na Gentil Carioca. Mas a verdade é que, em tempos de censura e campanhas difamatórias contra artistas, as inserções de Laura em solo brasileiro andam restritas. “Uma individual numa grande instituição foi adiada justamente em meio a esse novo momento conservador. Já estava agendada, com o dinheiro captado, mas era impossível fazer porque os senões seriam tantos...”, lamenta. Ela, por sua vez, jamais se dobrou a qualquer intervenção externa. “Com o peso de ser uma artista mulher que começou jovem, entendi que não se pode fazer concessões por certas coisas. Se há um determinado tempo em que uma obra não pode ser mostrada, é melhor não exibi-la do que cortá-la.”

O mesmo tom firme aparece na hora de falar sobre maternidade, que, no caso de Laura, tem os desafios extras de ser mãe de um adolescente negro, de 14 anos. Orfeu é filho dela com seu ex-companheiro, o treinador físico e ex-atleta olímpico William Vorhees, e traz cotidianamente para a mãe as experiências de viver numa sociedade profundamente racista. “Ele já foi barrado em loja ou em meios de arte e diz que não gosta de ir ao Leblon. Certa vez, estávamos lá, e ele começou a me sacudir, de brincadeira, porque não comprei umas balas de alga que havia me pedido. Diante daquela cena, a rua desacelerou imediatamente.”

Para além do diálogo com o rapaz, a artista leva o debate adiante também nas conversas que estabelece em suas rodas de amizade. “Tenho plena noção de que a experiência do Orfeu jamais será a mesma que a minha”, diz. “É intolerável atenuarmos sofrimentos reais. Precisamos calar a boca e deixar os outros falarem. Tenho amigos que dizem: ‘Ah, mas o legal é todo o mundo falar sobre igualdade’. Respondo: ‘Agora, não. Você sempre pôde fazer isso, né?’.”

Estariam essas elaborações também nas obras de Laura? “Claro! Tudo o que vivo impacta o meu trabalho”, ela responde. O “Chapéu ninhos comunais, 2022”, com o qual aparece na capa da revista, é um exemplo, ao guardar reflexões sobre um espaço que possa ser coabitado por espécies diferentes. “Tenho críticas a essa coisa das famílias unicelulares, sempre com a formatação do casal hétero”, afirma. “Precisamos tomar cuidado, porque estamos fazendo um novo grupo de fascistas. E a minha metodologia é estar o tempo todo atenta a essas coisas. É ruim porque é um tipo de policiamento. Mas é um policiamento de estado ético de vida.”

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