A pernambucana Clarice Falcão, de 32 anos, concede esta entrevista logo depois da sua aula de pilates, novidade que colocou na rotina há um mês “porque não é mais uma garota” e está buscando cuidar do corpo para não travar durante o corre de sua agenda animada entre o palco e as gravações de projetos de televisão. Atriz e cantora, ela acaba de lançar “Eleita”, série que alcançou a marca de segunda mais vista da Amazon Prime Vídeo no Brasil (atrás apenas de “O Senhor dos Anéis: os anéis de poder”), em seu primeiro fim de semana.
Além de protagonizar a divertida trama, ela assina também o roteiro junto com seu melhor amigo, Célio Porto, e Matheus Torreão. Na história — que poderia ser surreal, mas até que dá para encontrar semelhanças com a realidade — ela vive Fefê, uma blogueira que vence a eleição para governadora do Rio. “A Carolina Jabor (diretora geral da série) já tinha falado em trabalharmos juntas. Mas eu não queria fazer algo sobre relacionamento ou amizade. Então, falei com o Célio e ficamos pensando sobre qual poderia ser o tema, queríamos algo doido.”
Durante esse processo, o meu namorado (o jornalista e apresentador Guilherme Guedes) jogou essa ideia da governadora do Rio e amamos. Acho que a gente deve uns royalties para ele”, conta ela. Carolina é fã do trabalho de Clarice desde seu primeiro disco, “Monomania”, lançado em 2013. “Me impressionou a qualidade das composições. Vi que tinha uma dramaturgia nas letras. Como ela também é atriz, sugeri que ela criasse algo mais comportamental, no estilo de ‘Girls’. Até que Clarice veio com essa ideia bem original”, comenta Carolina. “A Fefê é uma pessoa parecida com ela, da noite, que gosta de música eletrônica e que, num absurdo, é eleita. Fomos atrás desse tom de comédia e nos divertimos ao tratar de um assunto tão relevante, ainda mais nos dias de hoje.”
A produção começou em 2018 e precisou dar uma pausa por conta da pandemia. Acabou saindo agora, pertinho das eleições. “Quem me conhece sabe que sou de esquerda e voto no Lula. Mas quis criar uma série mais anárquica, para a Fefê poder fazer o que quiser, sem dizerem que estou me posicionando contra a direita”, diz Clarice.
Além disso, a proposta foi colocar a mulher em um outro posto. “Eu e Célio sempre falamos em fazer uma obra feminista, em que ela fosse protagonista e também imatura. Normalmente, esse papel é do cara. O homem é doido e a mulher, certinha. Colocamos na Fefê algumas características minhas, como a carência, a impulsividade e o amor pelo carnaval, mas ainda é um personagem. O que mais queríamos destacar nela é o egoísmo. Se não consegue tomar conta nem dela mesmo, imagina do Estado. Mas, por pior que a Fefê seja, ela pode ser melhor do que muito político”, percebe a atriz.
Se expor nunca foi uma questão para Clarice. Seus discos sempre falam de situações que vive e suas redes sociais mostram a vida como ela é. Fazer graça de si também é algo que acontece naturalmente com a filha do diretor João Falcão e da escritora Adriana Falcão. “Gosto de fazer piada com tudo, inclusive de mim. Desde cedo estive na internet e isso pode ser muito cruel se você não criar uma casca. Aprendi a não procurar o meu nome em buscas e também a não dar importância para comentários negativos nem positivos. Quando a web começa a te amar, vem uma força igual te odiando. A primeira vez que isso acontece é meio desesperador”, recorda ela. “Hoje, não levo nada a sério, respondo hater zoando. Até as pessoas que gostam de mim me zoam, já não sei mais quem é fã e quem me odeia.”
Nos últimos cinco anos, a coisa ficou mais pesada. “Me posicionei politicamente desde o impeachment. E recebi ataques pesados da rede bolsonarista. Não perco um segundo do meu tempo com os xingamentos deles, sempre machistas. Me chamam de piranha e vagabunda direto”, confessa.
Enquanto esses temas não precisam ir para a terapia, os transtornos psíquicos demandam sua atenção. Diagnosticada desde os 16 anos com depressão, ela, que vem de uma família com quadros com o transtorno (a avó materna morreu de overdose de remédio e o avô se matou), fez seu último disco inteiro sobre o tema, o “Tem conserto”, lançado em 2019. “Recentemente, um pouco antes da pandemia, meu diagnóstico mudou: o espectro é bipolaridade. Desde que o tratamento foi adaptado, me sinto bem melhor. Quando se descobre a doença e tem remédio para ela, é um alívio. Melhorei muito. Não cura, mas os baixos não são tão baixos e os altos não são tão altos. Já tive momentos que pensei estar doida. Ficava três dias sem pisar fora de casa e em outros não conseguia parar de sair. O disco fala bastante disso. Tem músicas que começam mais deprês e outras que falam de mania, de não querer que a festa acabe. Deu para expurgar uns demônios e muita gente se identificou”, diz.
Agora, ela está finalizando seu novo disco. O tema será a ilusão, a desilusão e as expectativas frustradas. “É sobre as tantas coisas que imaginamos na nossa cabeça e não acontecem como desejamos. Vou tendo insights e anotando no celular. A maioria é coisa ruim, mas às vezes saem ideias boas. Estou fazendo o disco junto com o meu amigo produtor Lucas de Paiva e vou lançar no ano que vem”, adianta.
Trabalhar com pessoas próximas, aliás, é algo que Clarice adora. Célio, com quem dividiu a criação de “Eleita”, é seu companheiro desde os 14 anos. Grudam, brigam, moram juntos, separam. Já até namoraram uns meses na adolescência, mas viram que não daria certo. “O que mais admiro na Clarice é que ela nunca mudou com o passar do tempo, o sucesso, continua a mesma da escola. Além disso, ela tem vocação para ser feliz e fazer as pessoas que estão ao seu redor igualmente felizes. É muito generosa. Quando nos conhecemos, eu já tinha saído do armário. Mas me apaixonei por ela. Durou três meses até descobrirmos que ficávamos melhores como amigos”, conta Célio. “A gente é tão grudado, que até falamos parecido. Mas tentamos colocar limites nisso, não queremos ser a mesma pessoa. Já fizemos série, música, filme. A intimidade ajuda muito no trabalho, mas tem vezes que atrapalha na amizade. Queremos falar mal um do outro depois do trabalho e fica difícil. Adorei escrever um personagem que preciso pegar o pior da Clarice. E também o meu pior. A Fefê foi construída juntando nossos defeitos. E ela ainda tem a Nanda, uma melhor amiga.”
Assim como a personagem, Clarice já teve sua fase “mais doida”, experimentou muito do que a noite oferece e agora está saindo bem menos. “Gosto de ficar em casa, assisto todas as séries. Mas também curto tomar um vinho, ir à festinha na casa dos amigos. E no carnaval eu me jogo mesmo, faço super fantasias e tudo”, finaliza Clarice.