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Por Eduardo Vanini


O Samba da Volta foi fundado após o isolamento pandêmico — Foto: Vitor Melo
O Samba da Volta foi fundado após o isolamento pandêmico — Foto: Vitor Melo

O couro comia na roda de samba do Vaca Atolada, numa noite de junho, quando Cláudio Cruz, dono do reduto de bambas na Lapa, resolveu fazer uma ronda pelo salão. Acabou pegando no flagra um frequentador recente que, após pigarrear, cuspiu no chão do estabelecimento. “Chamei a atenção na mesma hora, e ele respondeu: ‘Está muito cheio, não queria ir lá fora’”, narra Cláudio, que não pensou duas vezes antes de concluir o puxão de orelha: “Perguntei se faria o mesmo na casa dele.”

Roda de samba não é bagunça e, no verão que promete ter esses eventos entre os mais disputados, é bom que os marinheiros de primeira viagem fiquem atentos aos sinais. “Isso aqui é o templo da nossa cultura, é preciso ter respeito!”, brada Cláudio.

Gaiato que só, ele discorre sobre o assunto sem praguejar o tal desavisado, de quem acabou amigo. Afinal, desde o fim das recomendações de isolamento social, que deixaram o Vaca fechado por um ano e meio, ele observa com gosto a alta procura pelas apresentações que rolam por lá de terça a sábado. “Houve uma verdadeira renovação no público. Desde pessoas mais jovens a mais velhos que, embora já gostassem de samba, não frequentavam o local”, comemora ele, que abriu o bar em 2009. “Acho que isso tem a ver com a repressão provocada pela pandemia e o desgoverno dos últimos anos. O samba tem o poder de nos deixar gritar contra isso tudo.”

O Vaca Atolada é um reduto de bambas na Lapa — Foto: Alexandre Cassiano
O Vaca Atolada é um reduto de bambas na Lapa — Foto: Alexandre Cassiano

Eventos do gênero, vale notar, jamais estiveram em baixa na cidade, onde os redutos mais tradicionais, como Renascença Clube, Pedra do Sal e Cacique de Ramos, seguem como referência. Mas a demanda reprimida deixou tudo mais intenso nos últimos meses, algo reiterado pelo historiador e escritor Luiz Antônio Simas. “O samba está vinculado à cultura de rua e existe uma gana pela retomada desse espaço de confraternização”, analisa. “Uma coisa interessante é como várias dessas rodas trazem uma garotada muito nova. Há uma aproximação grande entre uma parcela bastante significativa da juventude carioca e essa cultura, além da presença cada vez mais efetiva das mulheres como protagonistas desse processo.”

Novos tempos, novos costumes. Vocalista do Samba que Elas Querem, Silvia Duffrayer é um dos rostos mais conhecidos da cena descrita pelo historiador e também tem sentido na pele e no gogó os efeitos dessa nova onda. “Estamos com um volume de trabalho maior do que tínhamos em 2020”, compara. O grupo se apresenta mensalmente na Banca do André, na Cinelândia, e no Beco do Rato, no Centro, e Silvia reconhece que, apesar dos avanços, ainda tem muito marmanjo vacilando no machismo. E já que o assunto é bom senso, fica a dica: “Tem homem que chega na frente da roda e bate palma como se estivesse aprovando o nosso trabalho. Só um ‘sem noção’ mesmo para fazer isso! Não queremos a aprovação deles.”

O grupo Samba que Elas Querem é um dos expoentes da nova geração — Foto: Priscilla Haefeli
O grupo Samba que Elas Querem é um dos expoentes da nova geração — Foto: Priscilla Haefeli

Embora os impactos da nova onda feminista sejam mais recentes, a presença das pautas políticas e sociais nas rodas reflete uma característica nata dessa manifestação cultural. Isso nos leva a uma regra de ouro: o respeito aos mais velhos, que tanto lutaram para que o ritmo fosse descriminalizado e popularizado no Brasil. A menção é feita por Osmar Fernandes, cavaquinista e um dos integrantes do Samba da Volta, que tem este nome justamente por ter sido criado na retomada pós-isolamento. “É fundamental reconhecer o legado de quem já era sambista na década de 1950 e passou por toda a repressão. Se hoje podemos celebrar livremente, é porque muita gente resistiu lá atrás”, afirma.

O olhar sobre o passado, aliás, é uma marca do Samba da Volta, que tem como referência a quadra do Cacique de Ramos, com os clássicos do Fundo de Quintal e de Beth Carvalho. “Propiciamos um contato com o samba de raiz, autêntico”, define Osmar, sobre as apresentações feitas na Rua da Constituição 54, próximo à Praça Tiradentes, com contribuição voluntária como entrada (domingo que vem, é a saideira do ano).

Fora o culto à música, Osmar lembra que as rodas são também um espaço de convivência onde todo o mundo precisa se sentir bem. Para o samba não desandar, pedir música aos artistas, por exemplo, é um recurso a ser usado com parcimônia. “Não dá para ficar cobrando o tempo todo. A roda tem uma dinâmica muito viva”, ele diz. “É preciso também respeitar a velocidade em curso. Não adianta querer ouvir uma canção mais lenta no último set, quando a empolgação está lá no alto.”

O Cozinha Arrumada lota a quadra do Cardosão, em Laranjeiras — Foto: Léo Produções
O Cozinha Arrumada lota a quadra do Cardosão, em Laranjeiras — Foto: Léo Produções

Recebeu um convite para dar uma canja? Aproveite seus minutos de fama e nada mais do que isso, acrescenta João Borsoi, vocalista do Cozinha Arrumada. “É para cantar três músicas e ralar”, brinca, antes de fazer uma advertência ainda mais expressa: jamais pegue um instrumento sem autorização. “Tem gente que sai entrando na roda sem ser chamado. Isso é muito ruim.”

O Cozinha Arrumada também integra a leva de grupos mais recentes e tem lotado a quadra do Cardosão, em Laranjeiras, com apresentações gratuitas mensais, além de encontros esporádicos no Bar dos Irmãos, no Catete. Assim como os colegas do Samba da Volta, tem forte inspiração no Fundo de Quintal. Há também um flerte com a MPB e o rap, com a entrada de nomes como Criolo, Caetano Veloso e Luedji Luna no repertório, pensado para todo mundo cantar junto. “A roda de samba é uma tecnologia social do brasileiro para fazer uma festa acessível”, define João.

Com essas palavras, ele dá a deixa para mais um conselho para o público: quem quer ficar na linha de frente, bem junto aos músicos, é de bom tom ter as letras na ponta da língua e bater na palma da mão. “A galera que fica pertinho acaba trocando energia com o músico, e isso é fundamental. Se está chegando agora, fica mais de canto”, aconselha. “Parece bagunça, mas não é. A nossa cozinha é arrumada!”

O músico Pratinha toca nos redutos mais tradicionais da cidade — Foto: Léo Santos
O músico Pratinha toca nos redutos mais tradicionais da cidade — Foto: Léo Santos

A responsabilidade pela cadência, entretanto, não está só nas mãos do público. Um dos fundadores do movimento da Pedra do Sal, do Samba da Ouvidor, do Samba do Peixe e músico do Bip Bip, em Copacabana, Tiago Prata, o Pratinha, alerta para o risco de pasteurização das rodas que andam pipocando pela cidade. “Temo que fiquem muito iguais e percam a identidade ao apostarem em repertórios muito parecidos”, adverte. “É claro que tem que ter aquele momento de catarse, com os clássicos. Mas, quando a roda traz um repertório novo, e todo o mundo está cantando, isso é um sinal de qualidade.”

A mesma cautela vale para os intervalos com DJs que se tornaram populares, sobretudo nas apresentações maiores. “Acho isso desnecessário porque a roda em si tem que ser o evento”, afirma. “A pausa tem que ser, no máximo, de dez minutinhos, para uma ida ao banheiro.”

Sem samba, como canta Caetano Veloso, não dá.

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