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Por Laís Rissato — São Paulo

Coelho Neto (1864-1934), escritor e acadêmico maranhense que cunhou a frase “Ser mãe é padecer no paraíso” para descrever os sacrifícios sagrados da maternidade no soneto “Ser mãe”, jamais imaginaria que, mais de um século depois, causaria uma revolução na vida da atriz Karla Tenório e das 50 mil pessoas que a seguem no Instagram “Mãe Arrependida”. Na rede social, Karla, de 40 anos, fala livremente sobre “ódios” despertados pela maternidade, desconstrói o que é socialmente aceito e mostra que amar a filha adolescente, Flor Inaê, de 12 anos, nada tem a ver com gostar do papel de mãe.

“O grande responsável por esses sentimentos ruins não é a minha filha, e sim, um homem, que ocupou a segunda cadeira da Academia Brasileira de Letras e falou para todos o que é ser mãe”, pontua Karla. “Não gosto dessa maternidade que diz que é preciso padecer no paraíso, e estou criando uma nova, horizontal, que inclua minha filha. Mais leve, individual e sem julgamentos.”

Madura para a idade, Flor entendeu, depois de muitas conversas com a mãe, que seu arrependimento não interferia no amor das duas. “Não dá para voltar para 2010, antes de ela engravidar. Minha mãe é solo, e sempre me explicou tudo. Sei que ela me ama e não mente, e seremos parceiras para sempre”, diz a menina. A atriz ratifica: odiar a maternidade não significou, em momento algum, odiar a filha.

“Meu trabalho é separar as duas coisas para gerar saúde mental nas gerações que estão crescendo.” A coragem para tocar pela primeira vez em um assunto tabu já lhe rendeu “pedradas” e elogios dentro da bolha virtual, mas surgiu em 2020, após uma tragédia. Uma conhecida de Karla se suicidou com o bebê de 11 meses no colo, e ele também morreu.

“Se isso acontece com alguém como ela, branca, privilegiada e bem-sucedida, é porque a situação entre mulheres pretas, periféricas e de vulnerabilidade social é bem pior”, explica. Disposta a ampliar o debate após se surpreender com a quantidade de mensagens de mulheres afirmando terem os mesmos sentimentos negativos sobre a maternidade, Karla decidiu produzir o espetáculo “Mãe Arrependida”, que estreia dia 8, no Centro Cultural Justiça Federal, no Rio. Na época da pandemia, ela fez uma experimentação do espetáculo on-line, para poucas pessoas.

“Mas era uma versão indigesta. Eu mostrava um vídeo do meu parto, da cabeça da minha filha saindo de dentro de mim, e depois, em um efeito reverso, voltando. No palco, será algo mais palatável”, conta. Quando começou o trabalho nas redes, diz ter sido chamada de “monstra” e de “doente”. “Mas, para outras mulheres, fui a salvadora, porque quebrei o silenciamento.”

A pernambucana Rildes Mendonça, de 37 anos, foi uma das mães “salvas” por Karla. Criada em uma família extremamente religiosa e sem diálogo sobre sexualidade e planejamento familiar, engravidou do primeiro filho, Pedro Gabriel, hoje com 19 anos, aos 17, quando perdeu a virgindade com o namorado. E se lembra que nunca teve o desejo de ser mãe. “Minhas irmãs amavam brincar de boneca, e eu odiava. Nunca gostei nem de brincar de casinha”, diz a cozinheira. Rildes foi obrigada a se casar e mergulhou em uma vida infeliz, como se estivesse “presa em uma gaiola”. Anos depois, ainda teve mais duas gestações, de Melissa, de 17, e Arthur Miguel, de 14, e foi vítima de violência doméstica por parte do pai das crianças.

Rildes com os três filhos, Pedro Gabriel, Melissa e Arthur Miguel — Foto: Arquivo pessoal
Rildes com os três filhos, Pedro Gabriel, Melissa e Arthur Miguel — Foto: Arquivo pessoal

“Perdi muitas oportunidades por causa da maternidade. Ela é cruel, pesada e solitária, por mais que você tenha um companheiro. Deixei de me enxergar como mulher no espelho”, lamenta. A libertação veio, com muitas lágrimas, ao conhecer o conteúdo de Karla Tenório. “Mandava áudios chorando e pedindo ajuda, e ela encontrou uma psicóloga para mim. A terapia virou a chave da minha vida, e hoje consigo falar que amo meus filhos, mas me arrependo de ter me tornado mãe”, afirma Rildes.

Grande pesquisadora do tema, a socióloga israelense Orna Donath realizou, em 2015, o estudo que deu origem ao livro “Mães Arrependidas”. Entrevistou 23 mulheresde seu país natal, e entendeu que elas se arrependem, na maioria dos casos, pela pressão social e por expectativas sobre o maternar. O famigerado instinto materno, afirma a socióloga, é uma questão política, em um sistema criado e comandado por homens. Karla Tenório concorda: “As mães ficam com a função integral do cuidar, são invisibilizadas no mercado de trabalho, precisam sempre servir e acabam abnegadas. Com isso, jogam a carga emocional nos filhos”.

Antropóloga e advogada, Bruna Angotti relembra que na Europa do século XVIII, início da Revolução Industrial, o modelo de maternidade era outro: mulheres pobres não cuidavam de seus filhos porque as jornadas de trabalho eram extenuantes. E as muito ricas mal viam seus bebês, deixados aos cuidados de amas. “A mãe de hoje tem a ver com o desenho da família burguesa e passa muito pela religião, na figura da Virgem Maria”, explica. Para ela, a ideia da mulher amar o filho a qualquer custo foi construída socialmente. “Ninguém tem o instinto materno. Ele é cultural, não natural.”

A advogada e antropóloga Bruna Angotti — Foto: Arquivo pessoal
A advogada e antropóloga Bruna Angotti — Foto: Arquivo pessoal

A engenheira Daniele Miguel Silva, de 44 anos, entusiasta das páginas sobre arrependimento materno, sabe bem disso. Quando o filho Pedro Aurélio, de 13, nasceu, esperou sentir um amor incondicional, o que não aconteceu. Além das angústias, enfrentou também o ciúmes do então marido. “Ele reclamava e não me ajudava. Eu perdi a função de esposa, não existia mais uma atração sexual. As pessoas da família que celebraram tanto aquela criança na gravidez simplesmente sumiram. Deixei de ser mulher e me tornei apenas provedora”, lamenta.

Quando o menino completou 3 anos, Daniele se separou e não aguentou conciliar o trabalho com a maternidade. Além de enfrentar uma cansativa batalha pós-separação com o ex, ainda foi julgada pela mãe, que a agrediu fisicamente. “Um dia, cheguei na casa dela e ela partiu pra cima de mim na frente do Pedro, dizendo que eu era burra e não sabia segurar homem. Que a culpa de tudo o que estava acontecendo era minha”, relembra.

Exausta, Daniele entrou em depressão severa e buscou ajuda na terapia. Casada novamente, já avisou ao marido que não quer outro filho. “Ser mãe no Brasil é horrível, é um peso que carregamos nas costas. Eu não gosto de ser mãe, mas amo meu filho mais do que eu possa medir.”

Daniele com o filho Pedro Aurélio — Foto: Arquivo pessoal
Daniele com o filho Pedro Aurélio — Foto: Arquivo pessoal

A psicanalista Ana Vaz, de Niterói, afirma que o sentimento ambivalente sobre a maternidade sempre existiu. “Há uma mítica em torno dessa santidade que a maternidade traz, com seus sacrifícios”, explica a profissional. Com isso, a culpa vem com força total. “Existe muita coisa que envolve uma gestação e o nascimento do bebê. Não é algo apenas lindo e sublime, traz dores, dúvidas e medos, que não se diluem com o passar do tempo. É exigido muito da mulher”, ressalta.

Além da privação do sono, do cansaço e das transformações corporais e emocionais trazidas pelo pós-parto, as mães também precisam lidar com as opiniões da família. “Sempre tem alguém para dar uma dica, dizer como você tem que cuidar do bebê. E isso traz muita angústia”, diz a psicanalista.O histórico de abusos e violência doméstica entre as mães arrependidas não é uma coincidência. Apesar de não existirem estatísticas ou estudos que apontem a relação, Karla conta já ter recebido muitos relatos parecidos.

A psicanalista Ana Vaz — Foto: Arquivo pessoal
A psicanalista Ana Vaz — Foto: Arquivo pessoal

“Além da maternidade compulsória, o arrependimento pode ter ligação com a violência. Se a cada dez minutos uma mulher é estuprada no Brasil, esse é um sintoma inegável”, explica. Para as mães que se sentem aflitas, além de terapia para autoconhecimento, Ana sugere uma reflexão: “Será que eu não gosto da maternidade, ou da maneira como ela se impõe a mim?”. A pergunta está no ar.

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